sábado, 6 de junho de 2015

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MONOCHROME


Foto: Theatro Municipal de São João da Boa Vista




Tento derramar cores sobre a foto de família: o resultado soa falso. Uma coisa desalmada, sem pulso e temperatura. Cria-se uma inadequação, um ar postiço, não caberia cor ali de forma alguma. O mundo de 1941 da foto com margem branca e cantoneira, tirada de um álbum de madeira marchetada, é natural e necessariamente em preto e branco. Há propósito, graça e sentido em ser assim.

No entanto, quem estava lá posando para a pesada câmera, num vestido estampado e eternizado no clique em paupérrima escala de cinza, jura que o mundo era mais colorido que hoje. As cores mais vivas e intensas, flores e gramados sem a fuligem - essa sim monocromática - das chaminés e escapamentos. Sim, as hoje muito velhas gentes garantem que o branco e preto das fotos não fazia justiça ao variadíssimo pantone da vida real. Por mais que os ternos de linho fossem impecavelmente brancos, e as largas saias das beatas de respeito invariavelmente negras, havia cores intensas por todos os lados. 

A mulher do vestido estampado, enquanto ensaia a melhor posição para o clique, flerta com os olhos azuis do moço do reluzente Cadillac verde, tinindo debaixo do sol. Logo mais, à noite, a fila no cinema dobra o quarteirão para assistir Cidadão Kane. Honrando o preto e branco da obra-prima, só mesmo o preto e branco da plateia. Não pode ser de outra maneira, gente colorida assistindo seria profanar o monumento de celuloide. 

Há foto de cemitério na penúltima página do álbum marchetado. O lugar onde faz mais sentido ainda o black and white se bastando, o preto dos enlutados e o branco do mármore de carrara dos túmulos. Complementam-se divinamente o pesar dos que ficam e a leveza angelical dos que se foram. Negra é a escuridão embaixo da terra, alva é a asa de anjo, promessa da Bíblia e do padre. 

Aquele retrato do Guevara de olhar posto em horizonte incerto, Carlitos em filme ou foto, Einstein mostrando a língua, o beijo do final da guerra em Times Square: qualquer cor banalizaria instantaneamente esses monumentos imagéticos, tiraria deles a autoridade mítica. 

Decerto que a cor é uma ilusão do olho, que a Terra de azul não tem nada, é quando muito um ponto branco e minúsculo no negro imenso do cosmo. A mim já está mais do que claro que a madeira marchetada, do álbum aqui no colo, tem seus tons amarronzados só dentro dessa cabeça. Incerta massa cinzenta, de cinzentos pensamentos que ficam indo e voltando enquanto não viram cinzas.


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