Quando Bolinha apareceu na chácara de
Seu Tatá foi só alegria. O céu de um azul intenso, o verde das matas, o brilho
do sol, era como a primavera trazendo de novo o alento. O velho e bagunceiro
Escovão tinha morrido há pouco tempo, Seu Tatá sentia falta doutro cão
vira-latas daquele. Ele tinha ficado apenas com Batatinha e Xanadu, que eram
filhotes, por isso não podiam acompanhá-lo na lida do pomar, nas idas e vindas
até a vila para tratar dos negócios da chácara ou mesmo para uivarem juntos,
sem compromisso, se a lua era cheia.
É fato que Bolinha não estava sempre
presente. Ele vinha de muito longe (ao menos para um cachorro), visto que
morava noutro extremo da vila, onde ganhava o seu sustento como cão guia de um
senhor cego. Bolinha era habilidoso na condução do seu dono através do
calçamento e dos cruzamentos das vias. Mas o que ele gostava mesmo era da vida
alegre na chácara e de acompanhar o Seu Tatá nos seus afazeres. Ao contrário do
senhor cego, Seu Tatá não precisava dele, sabia se virar muito bem com a rotina
da chácara, mas demonstrava carinho pelo divertido e desastrado Bolinha, meio
sem tino para com as plantas.
Bolinha, como todo vira-lata, gostava
de se exibir, trazia uma manga na boca se Seu Tatá a arremessasse para longe.
Abanava o rabo pedindo para Seu Tatá jogá-la novamente. E de novo. E de novo. E
de novo. Ficava se esfregando nas pernas do Seu Tatá. E por ser correspondido,
achava mesmo que Seu Tatá precisava dele. Mas aquelas brincadeiras do Bolinha
eram bobagens. Só mesmo os cães, que não raciocinam, não percebem o quanto são,
por vezes, ridículos em suas atitudes. Pidões e carentes; demasiado inocentes.
Sair correndo, trazer uma manga na bocarra ou uivar para a lua cheia: Bolinha
não se apercebia de que nada disso agregava a chácara, ao Batatinha, a Xanadu
ou ao Seu Tatá. É verdade que se divertiam, mas só.
A vida é grave. Existe um sentido
maior para cada ato e toda a criatura deve se colocar no seu devido lugar.
Então, quando Bolinha clamava por mais atenção, julgava-se merecedor de morar
com Seu Tatá, assim como a Xanadu e o Batatinha, Seu Tatá foi ter com Bolinha:
– Olha Bolinha, você é muito bonitinho
e divertido, mas é cão guia do senhor cego lá na vila. Essa é a sua função nessa
Terra. Pense bem, se não fosse por você, o senhor cego não poderia trafegar com
segurança pelo calçamento e através dos cruzamentos entre as vias, cumprindo
tarefas ainda mais importantes que as tuas, na infinda escala dos desígnios das
criaturas. Há um plano maior que alicerça e a tudo dá sentido. Veja como você é
afortunado: mesmo sendo um cachorro vira-latas, você é também um guia, Bolinha.
A Xanadu, o Batatinha e eu somos gatos. Nós somos independentes, não precisamos
de você aqui na chácara. E depois, o Batatinha e a Xanadu vieram antes. Não
podemos mudar uns pelos outros apenas. Precisamos estar orientados a um
objetivo pré-estabelecido, anterior. Por isso, Bolinha, eu peço que você não me
procure mais.
Apesar de Bolinha pouco ter entendido
quanto às motivações mais profundas que norteiam a aguçada percepção felina,
mesmo para a parca sapiência de um reles cão vira-latas a colocação de ordem
prática de Seu Tatá tinha sido bastante contundente. E Bolinha se conformou;
com o rabo entre as pernas, ele retornou para o outro extremo da vila, onde
morava com o senhor cego.
Agora Bolinha tem consciência de como
é afortunado, porque sabe que, por intermédio dele, o senhor cego pode realizar
tarefas tão importantes que Bolinha é sequer capaz de concebê-las. Bolinha
entendeu também que catar os objetos atirados e trazê-los de volta ao dono,
assim como ficar roçando as pernas das criaturas em nada lhes acrescenta de
valor, por isso desistiu desse seu feitio.
Bolinha gostaria de entender a razão
dos gatos, mas isso a sua natureza canina não permite. Deve haver motivo muito
forte para um mundo assim tão justo e sisudo. Cada qual trabalhando como
engrenagem de uma grande moenda a esmagar a si mesma. E a noite, em meio a seus
devaneios, Bolinha ainda se recorda do quanto ele apreciava uivar para a lua
cheia.
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