quinta-feira, 22 de setembro de 2016

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A EXISTÊNCIA É UM AFETO


O nome primeiro deste livro foi “Afeto sem o Filtro da Linguagem”. Título apontado pelo editor como longo e sentido por mim, uma das primeiras leitoras, como desconfortável. O que é tão importante em afetos, que não se deva passar pelo crivo da linguagem? Então o “filtro da linguagem” desmerece ou enfraquece o afeto? E, procurando na filologia uma definição pura da palavra afeto:
Afeto – do latim AFFECTUS: disposto, inclinado a; particípio passado de AFFICERE: fazer algo a alguém, usar, manejar, influir sobre. Forma-se de Ad-, a, mais Facere, fazer.
A ideia mais forte é a de um ato, um fazer, uma força e uma ação estão embutidas em afeto. Muitas palavras fazem o ato perder a força. Por isso usar a mesma linguagem para explicar a vontade de impossivelmente prescindir da linguagem. A linguagem explica coisas para nós mesmos, pois pensamos sobre e sabemos o mundo por meio de palavras, que falam conosco em nossa mente.
O autor do livro reconhece e entende as marcas da história e a força dessa palavra. Assim como a etimologia me deu pistas do meu incômodo com título longo. Mesmo sem fuga completa do código linguístico, o encurtamento do título nos põe diante do ímpeto desta palavra. Quanto menos é mais evidente a veemência da raiz facere, que sobrevive na letra “f” de afeto. Ele quis enfatizar algo presente antes da linguagem no ato de afeto.
Sugeri o plural da palavra por entender que as potências e as forças que nos marcam a vida são diversas. Existem diferentes qualidades e intensidades de afeto. Parar e pensar no significado da palavra me levou a associar ações a esse sentimento. Em afeto não cabem tantas idealizações como na palavra “amor”, por exemplo. Nós perdemos o imediato da ação que está escondido em afeto. No cotidiano nos referimos à palavra como um sentimento abstrato, de aspecto idílico, talvez na mesma seara de vocábulos como romance, pureza, benquerença ou ternura. Porém, ele guarda ação em seu gene e se liga a imagens de carinho, fazer carinho. Como se demonstram os afetos? Fazendo algo para agradar como o clássico doce da canção de Chico Buarque: “Com açúcar, com afeto fiz seu doce predileto”. Afeto é tempero qual açúcar, é o próprio ato de feitura do doce.
Triste para nós é termos trancado os sentidos de afetação e afetado em conceitos negativos. É impossível na linguagem corrente concordar que haja vantagens nas afetações ou em ser afetado. Mas a etimologia guarda o ato de fazer e, para lembrarmos desse lado, precisaríamos pensar em feitura, afetação, afeto positivos ou negativos, quando as usássemos.
Existe um fazer que parte de alguém e colide com, envolve, perpassa outro alguém, e isso deixará consequências em ambos. É uma experiência que produzirá imagens em todos. Nós vivemos à procura dessas experiências, buscamos marcas para a vida.  Vivemos sob as forças produzidas por tais encontros e causamos força e encontros em outros entes. Na filosofia de Baruch de Espinosa o afeto é o cerne da própria vida. É força motriz das histórias humanas.
Não existe experiência no Mundo, que não possa ser sentida. Por isso, o humano é razão e emoção. Toda ação, produz algum tipo de movimento, de impacto ou marca nos sujeitos participantes. Sejam agentes ou pacientes. Por isso não se deve olhar estanque para as relações, procurando sujeito e objeto. As experiências produzem imagens, que serão lembradas pelos atores da experiência, daí temos o conceito de afecção. É a lembrança, a recordação da experiência, que traz a racionalização e a sensação. E, por fim, existe o afeto que, para Espinosa, é um esforço para aumentar a nossa abrangência e potência de agir no Mundo. Eis a nossa busca, porém há afetos que diminuem nossa ação frente ao mundo.
Se as histórias dos livros contam tragédias familiares, torturas psicológicas impostas a si mesmo por pensamentos viciantes, que produzem assassinos ou memórias de tempos tidos sempre como melhores do que o agora, elas contam trajetórias de afetos neste mundo percebido e representado pela espécie humana. A Literatura é a história dos afetos, entendidos como a perseverança de nossa vivência no mundo.
Este livro passeia pelas várias maneiras de salvação do regular existir no Mundo, que são, na filosofia espinosana a persistência e perseverança em permanecermos. Regular porque me refiro ao viver natural e biológico, circunstanciado histórico e culturalmente, sem rompantes de heroísmos e maravilhas, como pode querer sugerir, nos últimos tempos, a palavra ‘salvação’. Ela equivale mais à sustentação do existir, como os personagens se compõem e se agenciam em inter-relações, a fim de se apresentarem mais fortes para a existência e outras interações futuras.
O tempo é absoluto nessas inter-relações e, como o autor bem chamou, “Os Dentes de Cronos” ferem toda carne vivente. Ele mostra sua relatividade ligada ao espaço, como em PASSA QUATRO, onde há modus operandi mais tranquilo, com participantes marcantes para quem sai da metrópole, como maria-fumaça, cegos tocadores de sanfona, violeiros, bois, vacas e montanhas. Essa crônica que abre o capítulo determina os afetos que sobrevêm quando vivenciamos espaços distintos (MÁQUINA DE ESCREVER ESCRITORES). Do ponto A ao B. As incisões ou arranhões que as viagens abrem para pensarmos nosso espaço mais rotineiro e comum, nossa casa, nosso trabalho. Os sentimentos voltam potencializados, como evidenciam DEDALEIRA, ABERTURA DO OLHAR, PÉ DE PÁSSAROS e ORDINÁRIO ESPECIAL.
A razão não é opositora da experiência afetiva, pois pensar se produz pela racionalidade e   produz sensações, assim como o ato de imaginar, de relembrar. Somos racionais e imaginativos e COISAS DE CRIANÇA trazem o momento em que o narrador quer contar algum ponto das biografias: de netos e avós: AS DUAS PONTAS e FLORESCER; de uma menina cuja descoberta da dor traz tristeza profunda: A VISÃO DE ANA; de patos se metamorfoseando em isolamento e morte: FÁBULA DRAMÁTICA e de formandos: DEPEDIDA. Em todas as crônicas o narrador se encontra à frente no tempo de um acontecimento e vasculha o tempo anterior. Esse tempo localizou um fato ou o início de ação que trouxe os personagens até o instante narrativo. Experiências afetivas incidiram, tocaram-nos dali por diante, seja o avô cuidado tomando sol no quintal, a morte da avó, o vídeo da morte de um cachorrinho, o endurecimento das penas ou a proximidade de uma formatura.
A vida está circunstanciada pela pós-modernidade, um momento de diversificação e divulgação de todo tipo de experiências, em detrimento das tais instituições antigas, como tempo, casamento, família, religião, cultura, educação, estética etc. Na verdade, é plena a multiplicação de afecções e, por conseguinte, de afetos. Todos, na sociedade de relações, inter-relações voláteis, veem-se estimulados a tantas experiências e, ao mesmo tempo, perdidos em meio a tantas consequências e sensações de suas experiências e do movimento potencial que elas produzem ou podem produzir. Os entes, os participantes sempre fomos “ilhas”, a princípio existe a delimitação e a fronteira do corpo. Vejo, ouço, sinto, movimento-me e penso em turbilhões de imagens de aparelhos eletrônicos e tecnológicos portáteis, acessíveis a quase todos pelas lógicas de mercado. As pessoas se afetam com/em experiências de um tempo simultâneo, virtual, sem distâncias; em destituição das conhecidas relações com as instituições. Exemplo de inter-relação ruim é como a pós-modernidade lida com os que formaram muitas afecções no mundo moderno, digamos até a década de 1980. Uma pessoa de 70 ou 75 anos, em 2016, pode adentrar nos bancos e descobrir que não há ajudantes para ajudá-los no caixa de autoatendimento, “os jovens de colete com logotipo do banco”. Afinal, se a agência está disponível em programas para celulares espertos (smartphones), como considerar e lidar com a ideia, com a instituição “Velhice ou Senilidade”? As Províncias Flutuantes somos nós envolvidos pela presença difusa e propalada de imagens das telas led, amoled, LCD, toutchscreen. Sejamos preparados ou não, pois também contemplam quem não lida com elas: contemplam com a rejeição e um certo banimento.  Os conflitos destes afetos banalizados, produzidos a qualquer hora e lugar, povoam as Províncias. A, ainda, intransigente relação com a instituição Morte, na organização Família é contundente em ÁRVORE ADMIRADA, CORREDOR HOSPITALAR e LIBERTAR O CORPO, por exemplo. Vivências da instituição família atingida pelas feições da morte seja pela proximidade e possibilidade, como na velhice, estão na melancolia de AS LARANJAS; ou na desolação da vida sufocada e abafada por outras urgências, mas que, ainda sendo aceita, não acontece, não vigora como sentimos em LEITE MATERNO.
Os afetos são os atos e as providências cujas consequências são nossas sensações, prazerosas ou não. As motivações são multiplicadas, diversas e incompreendidas. Pois, considerando-se o volume da vida virtual, o tempo para entender é obsoleto. O capítulo IV são os diálogos afetivos entrelaçados em algum momento entre Fernando Rocha e os personagens, entes, protagonistas da cultura, que, também respondendo a experiências de seus contatos com o próprio tempo lançaram músicas, livros, estilos e personalidades na Babel que é o Mundo Líquido, ou seja, o que substitui as antigas instituições, que vestiam a fantasia de imutáveis, de perenes.  Nós, os viventes deste ‘agora’, damos quais respostas a este mundo sem eternidade? As guitarras de Jeff Buckley e Tom Yorke ou as composições de Nick Drake talvez tragam alguma resposta rápida ou paixões condensadas.... Quem sabe alguma certeza perene nas imagens do Ninil e a bela Cristina? Tudo afeto. As músicas, as fotos e as respostas ditas aqui, com suas imagens, concretizadas nestas crônicas poéticas.  Bons encontros e diálogos do autor com a cultura, já que se firma o pacto de SEMPRE EM FRENTE, mesmo com sensações de vazio ou falta de sentido.
O capítulo V traz a última resposta deste livro: os afetos são as agitações de nossa consciência, que, advindos de motivações favoráveis, potencializam nosso corpo para adentrarmos mais um passo na instituição Devir ou Futuro. É mais um passo, todos os dias. Assim permanecemos e findamos, mas a ANUNCIAÇÃO, que nomeia o capítulo é a de que percebamos o caminho, o trajeto e os tais afetos, potencializadores de nós mesmos em algum momento.

Otacília Andrea Sales

2 comentários

Daniel Lopes

um tremendo estudo da Otacília. Inteligente, sensível!

Fernando Rocha

A gente ainda reclama, Daniel, mas são atos de afeto como este que fazem os caminhos tortuosos da literatura valerem a pena.