Enquanto
eu sofria um desmaio súbito – e sem nenhuma causa aparente – D. e P. estavam
reunidos noutro canto da cidade, discutindo como reduzir os seus gastos com o
meu salário, como forma de maximizar os dividendos para as suas respectivas
empresas. Ser funcionário terceirizado tem dessas coisas. Dois chefes, duas
empresas que precisam fechar o mês no azul. E Você, além de ter de trabalhar
com o que quer que te mandem fazer, precisa também fechar o mês no azul, para sobreviver.
Foi
no início do mês de agosto de 2016 que eu tive a infeliz ideia de iniciar a
leitura da obra “Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos” de Emmanuel Carrére, recém
publicada pela Editora Aleph aqui no Brasil. Para quem não sabe do que se
trata, “Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos” é a controvertida biografia do
escritor Philip K. Dick (PKD).
O
estadunidense Philip K. Dick – falecido aos 53 anos no dia 02 de março de 1982
– escreveu “Ubik”, “O Homem do Castelo do Alto”, “VALIS”, “O Homem Duplo”, dentre
muitas outras obras que deram novo significado ao gênero da ficção científica. Grandes
sucessos do cinema como “Blade Runner”, “Minority Report”, “Total Recall”, “Screamers”,
“Paycheck”, “Impostor”, “Next”, “A Scanner Darkly” e “The Adjustment Bureau”
são adaptações dos livros de PKD.
Até
aí tudo bem, e Você pode estar pensando: este tal Philip K. Dick era um
sortudo. Acontece que não é bem assim: PKD teve uma vida muito difícil. Ele
tinha grande dificuldade em se relacionar com as pessoas, era esquizofrênico, paranoico
e hipocondríaco, tendo sido internado duas vezes por acessos de loucura. Apesar
da genialidade manifesta em suas obras, morreu praticamente desconhecido, tendo
sofrido restrições financeiras ao longo de sua vida – uma condição bastante
distinta do glamour que seu nome exerce no meio literário, naquele do cinema ou
da ficção científica dos nossos dias.
Por
mais triste ou depressiva que seja a vida de Philip K. Dick, pode ainda assim
ser uma ótima estória, especialmente por se tratar da história de um dos
maiores escritores de ficção científica. Mas o momento não era bom. E o tempo
estava a favor dele, e não a meu favor.
O
câncer neuroendócrino (NET) é maligno. O tumor NET de grau 3 acontece em 20%
das ocorrências, sendo as suas principais vítimas do sexo masculino. Patologias
associadas são esporádicas. Se o câncer apresenta-se em um tumor único,
variando de 2 a 5 centímetros, especialmente no pâncreas, o prognóstico é
pobre. E a morte iminente.
Eu
vinha fazendo muitos exames e consultas, em médicos de diferentes
especialidades, para a investigação das causas de dois desmaios súbitos. Não
poderia haver momento mais inoportuno para a minha convalescença: a crise econômica
em alta e a empresa reduzindo pontualmente o seu quadro. Eu, por ser terceiro,
estava literalmente com o cu na mão.
Como
não havia o que fazer, eu lia “Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos” de Emmanuel
Carrére nas salas de espera dos consultórios. Foi quando aconteceu: eu recebi o
diagnóstico de um câncer neuroendócrino na mesma semana em que P. e F. me
convocaram para uma reunião. Eles aventavam a possibilidade da mudança de uma
empresa para outra, falavam da crise econômica, formas de se reduzir a carga
tributária e blá, blá, blá, blá. Eu, com o pensamento longe, só torcendo para
que estivesse adormecido, para que tudo aquilo não passasse de um simples pesadelo.
Mas que nada, esta era a minha realidade e eu tinha de encará-la de frente.
Ponto para Philip K. Dick.
Tumores
múltiplos de até 2 centímetros caracterizam o câncer neuroendócrino de grau 2.
Esta variante é responsável por 10% das ocorrências do NET, sendo igualmente observada
em homens e mulheres. Geralmente estão associadas a outras patologias, dentre
as quais Zollinger Ellison e MEN-1. O prognóstico, na maior parte dos casos, é
bom.
Então
eu tomei a firme decisão de continuar trabalhando e não revelei o diagnóstico
aos meus colegas de empresa – apesar das minhas escapadelas para as consultas
médicas e os exames, que estavam me levando às raias da loucura. Confesso que a
leitura de “Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos”, naquele momento em específico,
não contribuía em nada para serenar os meus ânimos. Muito pelo contrário. Ainda
assim, levei ao extremo a convicção de não esmorecer.
O
auge da minha ansiedade ocorreu na segunda semana de setembro, enquanto eu aguardava
o resultado da tomografia computadorizada de abdome superior, feita com
contraste, cujo laudo informaria se eu tinha focos de NET espalhados pelo corpo
ou, se no meu caso, este estava restrito a um único órgão. E nessa semana eu me
senti particularmente próximo de PKD.
Um
ou múltiplos tumores de tamanhos inferiores a 1 centímetro caracterizam o
câncer neuroendócrino de grau 1. Esta variante da doença responde por 70% dos
casos, sendo a sua ocorrência predominante no sexo feminino. O tumor NET grau 1
está associado à gastrite crônica atrófica e à anemia perniciosa.
Para
a minha sorte, era este o meu caso: um único e pequeno tumor NET de grau 1,
identificado e retirado através de endoscopia. Ponto para mim. Agora, já
próximo ao final do mês de setembro, com o início da primavera e o termino da
leitura de “Eu Estou Vivo e Vocês Estão Mortos”, experimento a sensação de renascimento,
de esperança renovada.
Philip
K. Dick, eu estou vivo e é Você quem está morto! (Você venceu esta batalha, Jorge
Xerxes, mas eu ainda vou trazê-lo para junto de mim! Parece que posso ouvi-lo
sussurrar ao meu ouvido).
Independente
dessa nossa disputa, eu me curvo ante a genialidade de PKD e ao ótimo livro de
Emmanuel Carrére, que me acompanharam nos últimos dois meses. Apresento, a
seguir, alguns trechos colecionados dessa aventura, que podem não significar
nada para muita gente, mas representam muito para mim.
* * *
Ele
brincou um momento com a ideia de trocar seu cérebro, durante o tempo de um
livro, pelo cérebro de Nixon, depois abandonou a ideia: Phil Dick acordando um
belo dia na pele do senador da Califórnia e este, na pele de um escriba de
Berkeley, o que certamente daria uma bela história, fértil em repercussões. Mas
não era nisso que ele pensava. Num manual de filosofia, ele tinha descoberto a
distinção entre o idios kosmos, a
visão singular do universo que cada um de nós leva dentro da cabeça, e o koino kosmos, que passa pelo universo
objetivo. Enquanto falamos da “realidade”, nos referimos por comodidade ao koino kosmos, mas este não existe,
propriamente falando: sua percepção resulta de um acordo convencional entre os
homens, desconfiados de que suas relações se desenrolam sobre um terreno
estável; é uma espécie de ficção diplomática, o menor denominador comum entre o
meu idios kosmos e o de meus
vizinhos.
Na
verdade, sua ideia não era trocar o seu idios
kosmos pelo de outra pessoa – correndo o risco de nem se dar conta disso,
pois ele seria essa outra pessoa, e não mais si próprio –, mas visitar o idios kosmos de outra pessoa sem se
desfazer do seu. De nele viajar como se fosse um país estrangeiro. Ele
precisaria só de um artifício para possibilitar essa viagem, e o gênero com que
ele trabalhava tinha pelo menos a vantagem de lhe permitir uma profusão dessas
coisas. Na mesma noite, ele digitou essas linhas, um notável apanhado daquilo
que, em ficção científica, é capaz de persuadir parte importante do público
cultivado a se arriscar até a página seguinte:
“Em
2 de outubro de 1959, o defletor do feixe de prótons do Bevatron de Belmont
sofreu uma avaria: um arco de 6 milhões de volts disparou rumo ao teto da sala,
queimando tudo o que estava no caminho, em especial a plataforma de observação
sobre a qual estavam oito pessoas. Elas caíram no chão e nele permaneceram,
feridas ou mergulhadas no coma até que o campo magnético foi interrompido e as
radiações mais rigorosas foram parcialmente reabsorvidas.”
* *
*
Como
romances em que o herói é um escritor despertam legítima desconfiança dos
editores, ele mudou de nome e de emprego em “O homem mais importante do mundo”.
Há muitos anos, depois de ter obtido sucesso pela primeira vez, Ragle Gumm
ganha a vida respondendo às perguntas de um concurso organizado pela gazeta
local e intitulado “Onde estará o homenzinho verde amanhã?”
* *
*
Ele
também tinha lido numa revista de vulgarização o registro de uma experiência
psicológica: são traçados dois riscos num quadro negro, o primeiro deles, A,
claramente mais longo que o segundo, B. Depois o quadro é mostrado a um grupo
de cinco pessoas ao qual se pede para que digam qual é o mais longo, A ou B.
Depois de todo mundo gargalhar diante de um teste ridiculamente fácil desses,
cada um responde. Quatro membros do grupo, cúmplices do pesquisador, afirmam,
contra as evidências, que B é mais longo do que A. O quinto membro, que na
verdade é o sujeito da experiência, acaba, invariavelmente e à custa de um
grande transtorno psíquico, por rejeitar o testemunho dos seus sentidos e se
une a opinião geral. É esse tipo de experiência que os Estados totalitários
levaram à grande escala. Eles desenvolveram a capacidade de mostrar uma cadeira
para uma pessoa e fazê-las dizer que é uma mesa. Melhor: de fazê-las acreditar
nisso. Desse ponto de vista, aquilo que ele, impulsionado pelo oráculo, tinha
contado em seu livro, não era de todo absurdo. Tinha inclusive atingido uma
verdade profunda.
* * *
Como
o oráculo havia previsto, “O homem do castelo do alto” foi o primeiro sucesso
de sua carreira: ele ganhou o prêmio Hugo, a mais importante recompensa que um
autor de ficção científica americano pode esperar.
* * *
Depois
que um oráculo de 5 mil anos de idade lhe havia assegurado a “verdade
interior”, ele mergulhou de maneira metódica no labirinto do seu idios kosmos. Sua “idiotice” pessoal
agora se organizava em torno da intuição de que não só é impossível apreender o
real diretamente, posto que passa pelo filtro da subjetividade de cada um, mas
que o consenso um pouco generalizado em relação a isso resulta de uma
enganação. Aquilo que todos os seres razoáveis concordam em considerar
realidade, para além de suas diferenças de percepção e julgamento, não passa de
uma ilusão, um simulacro forjado ou por uma minoria para se aproveitar da
maioria, ou por uma potência exterior para se aproveitar de todo mundo. O que
chamamos de realidade não é a realidade.
* * *
Então,
um psiquiatra melífluo lhe apresenta uma tese em voga, segundo a qual o autismo
e a esquizofrenia são, de modo geral, problemas da percepção do tempo: o que
distingue a existência do esquizofrênico da nossa é que ele tem tudo, quer
queira ou não – como se todo o rolo do filme a que assistimos desfilando imagem
atrás de imagem tivesse lhe caído na cabeça. Para ele, a causalidade não
existe, e sim, em seu lugar, esse princípio de conexão desprovido de causa que
Wolfgang Pauli chamou de “sincronicidade” e pelo qual Jung, substituindo um
enigma por outro, pretendia explicar as coincidências. Como uma pessoa sob o
efeito do LSD ou como Deus, por mais que se conheça a maneira do seu idios kosmos, ele está mergulhado num
presente eterno. A realidade lhe chega num bloco: uma espécie de acidente de
carro perpétuo, que segue persistindo e persistirá para sempre. De certa
maneira, é possível defender que um esquizofrênico tem acesso àquilo que
chamamos de futuro.
* * *
No
romance, a crise se produz quando o blade
runner, por motivos mais eróticos do que evangélicos ou turingianos, começa
a sentir empatia por uma de suas presas, mais precisamente por uma dentre elas.
Essa falha profissional é, ao mesmo tempo, facilitada e agravada por um novo
dado: os fabricantes pregaram uma peça particularmente viciosa nos androides
mais sofisticados, implantando em seus programas uma memória fictícia que faz
com que eles acreditem que são humanos. Eles têm lembranças de infância,
impressões de dejá-vù e emoções como
os homens. Nada os distingue do lado de fora, tampouco do lado de dentro. Eles
simplesmente não sabem. E quando se tornam suspeitos e são submetidos ao teste,
ficam danados como qualquer um de nós ficaria. “Você vai me dizer a verdade,
hein? Se eu for um androide, você vai me dizer?” É curioso encontrar na pluma
de um escritor de ficção científica, além de um deplorável estilista, esse tipo
de trechos memoráveis que causam não só arrepios, mas também a certeza de tocar
em algo essencial, fundador. Entrever um abismo que faz parte de nós e que
ninguém tinha sondado. Blade Runner
comporta um desses instantes: o grito de horror do androide que descobre a sua
condição. Um horror absoluto, sem remédio nem consolação, a partir do qual tudo
se torna monstruosamente possível.
* * *
Essa
caixa de empatia, instrumento de um culto clandestino na sociedade policial
onde se pratica também a caça de androides, tem a aparência de um pequeno
televisor com punhos. Aquele que puxa os punhos e se inclina sobre a caixa logo
assiste a uma cena cuja repetição consiste no núcleo do culto: um homem velho,
do qual a única coisa que se sabe é que se chama Mercer, escala com dificuldade
o declive de uma montanha e, ao longo dessa subida, é apedrejado. Mas um adepto
do “mercerismo” não se contenta em apenas assistir, ele tem que participar. São
os seus pés que se embaralham sobre o chão acidentado, a sua carne é atingida
pelas pedras, a sua alma que está triste a ponto de morrer e, no entanto,
também está inexplicavelmente feliz. Ele se funde em Mercer e também em todos
aqueles que puxaram os punhos de sua caixa de empatia simultaneamente na Terra
e nos planetas colonizados. Ele sente os outros ao redor de si, igualmente
sofredores e exultantes. Ele os incorpora. A fusão com Mercer, percurso da cruz
e da comunhão com os santos, é o exato oposto da tradução sob o controle de
Palmer Eldritch: ela não isola, mas une; não traz perdas, mas salvação. E
sempre se renova. Ao chegar no topo da montanha, Mercer cai e agoniza. Levado
ao sepulcro, ele torna a se levantar. “Sempre, e nós junto com ele”, diz o
herói maravilhado. “É isso que faz com que nós também sejamos eternos.” Tudo
isso desagrada sobremaneira o poder temporário, que considera o culto ilegal,
persegue seus adeptos e conduz uma vigorosa campanha ideológica contra sua fé.
Colocando uma caixa contra a outra, logicamente o instrumento dessa campanha
era a televisão, cujo apresentador queridinho, Buster Gente Fina, ridiculariza
noite após noite, essa pulsão masoquista que leva os mercerianos a fugir da
realidade para sofrer em conjunto. Se fosse para viver um momento agradável, vá
lá, mas levar pedradas e partilhar das tristezas de milhares de desconhecidos
ultrapassava o seu entendimento, ainda mais considerando que era tão simples
ajustar mecanicamente o seu humor para ter uma alegria permanente ou até mesmo
uma boa e velha depressão laica. Por volta do fim do romance, Buster Gente Fina
chuta o pau da barraca ao revelar, com provas à mão, que o mercerismo é um
embuste, o ópio do povo forjado pelo governo que, maquiavélico, organizou sua
proibição somente para impulsionar ainda mais o consumo. A cena da montanha é
gravada em estúdio e transmitida por um canal diferente do programa televisivo,
mas tem a mesma natureza. O próprio Mercer, cujos sectários se perguntavam no
começo se era de fato um homem ou uma entidade arquetípica qualquer introduzida
na cultura terráquea por uma insondável vontade cósmica, não passa de um ator
alcoólatra de quinta categoria, sobrevivente de séries de televisão moribundas
e que, para fazer o papel de sua vida, molestado por pedras de borracha e
sangrando ketchup, só sofreu mesmo, durante as filmagens, o desmame de uísque.
Com esses pesados gracejos de Buster Gente Fina, toda a esperança religiosa do
homem parece estar arruinada. Entretanto, não é bem assim. Numa cena realmente
magnífica em que Dick transpõe o encontro de Emaús, Mercer aparece para um
desses discípulos, um blade runner
prostrado diante da caixa de empatia que agora preenche o chuvisco da televisão
quando os programas se encerram, explicando-lhe tranquilamente que tudo o que o
Buster Gente Fina dissera era verdade, tudo mesmo, incluindo o detalhe do
uísque, que foi uma abstinência muito desagradável para o velho ator acoólatra,
mas que isso não mudava nada. Absolutamente nada. “Porque você está aqui e eu
estou aqui.”
* * *
Nesse
ponto da discussão, o bispo assumia um ar incomodado de quem hesita em
desenganar uma criança que acredita em Papai Noel. Acompanhado de Maren, ele ia
a Londres a cada dois ou três meses para encontrar John Allegro, um exegeta que
representava a Grã-Bretanha na equipe internacional encarregada de estudar e
publicar os Manuscritos do Mar Morto. Ele voltava de cada uma dessas viagens ao
mesmo tempo destruído e hiper-excitado, portando verdades escandalosas. De
acordo com as últimas novidades que ele comunicava com temor e deleite ao mesmo
tempo, parecia mesmo que os Evangelhos eram um embuste, e, Jesus, o epígono da
seita dos essênios em torno do qual um bando de judeus malandros havia construído
uma fraude colossal. Diante dessas revelações – “científicas”, insistia o
bispo, o dedo indicador erguido –, Dick se viu no papel de defensor dos dogmas,
algo que não desagradava nem o seu espírito de contradição, nem seus votos mais
profundos. Às investidas de seu amigo, ele respondia igual a Mercer: “Tudo bem,
mas, mesmo que seja verdade, isso não muda nada. Você me leva a pensar naquele
universitário segundo o qual Hamlet não
foi escrito por Shakespeare, mas sim por um sujeito que tinha o mesmo nome. Se
você acredita que Cristo era o filho de Deus, que Ele ressuscitou e matou a
morte, sempre podemos lhe provar por a +
b que Ele não passava de um personagem de segundo plano ou até mesmo que
Ele nem existiu – isso não muda absolutamente nada. Você tem toda a razão em
buscar a verdade, mas deveria saber que a verdade é Ele. Caso contrário, todas
as suas resoluções significam apenas que você não acredita n’Ele, ou seja, que
você é ignorante.” O bispo devia confessar que não tinha mais tanta certeza
assim de acreditar na religião à qual servia. E que isso o deixava inquieto.
* * *
Quando
essa ideia lhe ocorreu, Dick ficou aterrorizado. Porque aquela substância
miraculosa que ele tinha apresentado como um inencontrável produto de consumo
corriqueiro, como um pertinente paradoxo, não representava a seus olhos apenas
comprimidos capazes de restaurar o domínio do mundo, mas sim, e de maneira
muito mais profunda, a potência redentora que nos prende às garras da entropia,
à perversidade do demiurgo, à morte. Ele se divertia – cada um diverte seus
cupins como pode – colocando na epígrafe de cada capítulo do livro um slogan
publicitário vangloriando uma das diversas virtudes do produto, à moda de
Runciter: “A melhor forma de pedir uma cerveja é gritar Ubik.” “Ubik instantâneo
possui todo o sabor fresco do café recém-coado.” “Desperte para Ubik e seja
extraordinário.” “Se você está se sentindo no fundo do posso por causa das
preocupações com dinheiro, fale com a moça da Ubik Poupanças & Empréstimos.”
“O novo sutiã Ubik extra suave e o sutiã especial Ubik longline significam ‘erga
os braços e fique mais curvilínea na mesma hora!’” “Será que tenho mau hálito,
Tom? Ed, se está preocupado com isso, experimente o novo e atual Ubik, com ação
espumante germicida.” Mas, ao chegar ao final, em vez de fazer um pastiche da
Madison Avenue, ele recorreu ao prólogo de São João (e a um pouco do primeiro
poema do Tao Te King): “Eu sou Ubik.
Antes que o universo fosse, eu sou. Eu fiz os sóis, eu fiz os mundos. Eu criei
a vida e os lugares que elas habitam. Eu as transfiro para cá, eu as ponho ali.
Elas seguem minhas ordens, fazem o que mando. Eu sou o verbo e o meu nome nunca
é dito, o nome que ninguém conhece. Eu sou chamado de Ubik, mas este não é o
meu nome. Eu sou. Eu sempre serei.”
* * *
Em
pânico ele escreveu o final do livro. Nada além de uma corrida tresloucada,
batizada por mortes e metamorfoses atrozes, ao longo da qual Joe Chip tenta, ao
mesmo tempo, colocar as mãos num frasco de Ubik ainda isento de regressão e
identificar as forças que disputavam aquele limbo. “Acho”, disse a si mesmo, “que
não encontramos nosso inimigo cara a cara, nem nosso amigo.” Dick se perguntava
que rosto daria a esse Amigo, do qual Runciter era apenas um representante:
jovens e caridosas mulheres percorrem a meia-vida, trazendo consigo um pouco de
Ubik e uma frágil esperança, antes de desaparecer num sopro. Elas deixam poucas
lembranças. Por outro lado, ele sabia muito bem que, tivesse o Inimigo o rosto
que fosse, ele tinha cruzado várias vezes em sonho com seu olhar angustiante e
cruel de um roedor psicótico. Em Ubik, ele lhe deu o nome de Jory. Trata-se de
uma criança morta na tenra idade que foi colocada em situação de meia-vida no
Moratório Entes Queridos. Dotado, por causa de sua juventude, de uma energia
encefálica maior do que os ocupantes dos outros caixões, ele se vale da fusão
entre os seus fluxos mentais para devorá-los literalmente, como um emissor de rádio
mais potente faz com seus vizinhos de freqüência. A seu bel-prazer, ele molda o
universo onde essas consciências se movem para torturá-las, enganá-las e atraí-las
a um canto da imensa teia tecida para recebê-los. Morto, ele sobrevive e
aumenta a potência da morte ao absorver o que resta de vida dos outros mortos.
E essa criança era um gêmeo.
* * *
Nancy
não agüentava mais suas crises, as drogas, o medo de ficar louco. Ela própria
estava sentindo próxima a reaproximação de sua depressão. Em setembro, partiu,
levando com ela a filha Isa. Então com três anos de idade, a pequena viu, pelo
vidro do banco de trás, seu pai correndo atrás do carro e sua silhueta se
apequenando, depois viraram a esquina e ela não mais o viu.
* * *
Ao
fim de duas semanas, acharam que ele tinha esfregado privadas o bastante e,
como tinham por princípio de usar as capacidades de cada um da melhor forma
possível, ele foi parar detrás de uma máquina de escrever. Num currículo,
aquilo que ele fazia pelo nome de relações públicas: compilava relatórios sobre
as atividades de X-Kalay, classificava recortes de matérias sobre problemas com
drogas e escrevia cartas solicitando a generosidade de eventuais doadores. Em
seus momentos livres, desenvolvia uma teoria sobre o funcionamento do centro
que, segundo ele, abrigava um laboratório onde se fabricava heroína. A mesma mão
distribuía o veneno e o contraveneno, a fim de criar um novo tipo de indivíduo:
o cidadão dócil e alienado da sociedade do futuro, transformado em escravo pela
organização, que lhe ensinava a amar e odiar o único mestre capaz de protegê-lo.
E Dick tinha se tornado uma das engrenagens dessa organização, ocupando um
maravilhoso posto de observação. Vestido com uma blusa branca, ele vistoriava
os corredores com um ar desenvolto e abria todas as portas na esperança de
encontrar um acesso ao tal laboratório clandestino. Suas desconfianças não o
impediam de, a cada vez que cruzava com um membro da equipe, exprimir sua
gratidão de maneira calorosa e sincera: pela primeira vez na vida ele se sentia
útil; tinha encontrado uma família; se o quisessem ali, ele ficaria em X-Kalay
a vida toda, dando o melhor de si para os pobres drogados, seus semelhantes,
seus irmãos.
* * *
Até
onde conseguia remontar, ele sempre afastara com todo o seu ser a ideia de que
aquilo que lhe acontecia poderia ser fruto do acaso, uma dança de elétrons desprovida
de coreógrafo, meras combinações aleatórias. Para ele, tudo precisava ter um
sentido, e toda sua vida tinha sido vivida e escrutinada em função desse
postulado. Ora, a partir da ideia que tudo tem um significado escondido,
esbarra-se fatalmente na concepção de uma intenção. Quando a vida é encarada como
um desenho, logo se chega a vê-la também como uma execução de um plano,
questionando quem seria o responsável por seu traçado. Essa intuição que nos
acomete a todos de maneira mais ou menos vergonhosa atinge sua medida plena em
dois sistemas de pensamento: o primeiro era a fé religiosa e o segundo, a paranóia;
e, por ter experimentado as duas coisas, ele duvidava cada vez mais que
houvesse uma diferença entre elas. Calejado, ele não queria acreditar mais que
o real era o disfarce de uma outra coisa, uma tapeçaria que, ao tecer, vemos
somente a parte de trás, mas cuja parte da frente nos será um dia revelada, na
glória. Ele tinha percorrido longamente a ladainha de São Paulo e do Ursinho
Pooh: “Agora estamos nos vendo num espelho sombrio, mas um dia chegaremos a ver
e seremos vistos face a face... Estaremos noutro ponto da floresta, onde sempre
haverá uma criança com seu urso.” Tinha chegado a hora de fazer as pazes com a áspera
sabedoria de Lucrécio: “Não sentiremos mais nada porque não sentiremos mais”; não
existirá mais ninguém para ser visto frente a frente à luz plena, e aquilo que
agora se acredita estar vendo num espelho sombrio não passa de nosso reflexo
deformado pelo medo de morrer e de ter sofrido sem razão. Por mais que, nas
sociedades agnósticas modernas, esse materialismo faça as vezes de expressão
oficial do bom senso, ele sabia que poucos eram os homens que, no fundo do coração,
se resignavam verdadeiramente a isso de tanto que seus desejos tinham sido
feridos. Apesar de tudo, queremos acreditar em algo, encontrar um sentido. A
contragosto, ele tinha aprendido até onde isso pode levar: seu dever agora era
alertar seus semelhantes. Quando vinham entrevistá-lo, ele exibia essa nova
teoria sobre o real, sobre a qual todas as teorias sobre o real são vãs, falsas
e puramente sintomáticas. O real é simples, só isso, compacto e idiota como uma
pedra. Não existe um fundo falso. Nós sentimos a necessidade de observar e
deduzir regras a partir disso para conseguir funcionar na nossa vidinha de todo
dia, mas é preciso parar por aí e admitir que a maioria dos acontecimentos se dão
por acaso. Com a mesma veemência que antigos stalinistas ou padres excomungados
se punham a desancar suas antigas igrejas, ele citava milhares de exemplos de
condutas que trazem consigo a mania de procurar um sentido onde não há.
* * *
Convivendo
com a familiaridade lúcida de seu mal, como acontece a alguns grandes doentes, ele
fazia uma distinção bastante clara entre: 1) escrever sobre como organizações
iguais à X-Kalay na verdade escondem laboratórios clandestinos para produção de
drogas ou como Nixon era comunista; 2) acreditar nisso; 3) acreditar que isso
era verdade. Ele considerava possível escrever a respeito, na medida em que era
autor de ficção científica e que esse ofício consistia justamente em imaginar
essas hipóteses, mas achava condenável acreditar nelas. Ele tinha entendido
que, acima de tudo, podia acreditar em alguma coisa sem que ela fosse de fato
verdade, por que ele não só era escritor de ficção científica, como também um paranóico
confirmado e, portanto, tendia a confundir o mundo real com o mundo de seus
livros. Ele sentia orgulho dessa lucidez e estava decidido a apoiar-se nela,
mas isso não impedia que ele achasse a vida morna sem esse artifício, como
costuma acontecer aos sobreviventes de um vício. O último capítulo de Dom Quixote mostra o cavaleiro de triste
figura curado de sua loucura e morrendo por causa disso. Durante sua agonia,
ele profere discursos tão emocionantes quanto sensatos, celebrando o bom senso
de Sancho Pança e maldizendo os romances de cavalaria. É um dos capítulos mais
tristes da história da literatura.
* * *
“Eu
sei que você não é mau caráter”, ele reconhecia; “sei que você dá aos pobres,
que envia cheques para associações de caridade, que o sofrimento das crianças e
dos gatos pode levá-lo às lágrimas. Mas isso não muda em nada o fato de que você
continua sendo incapaz de demonstrar empatia. Por mais que você queira e reze,
não tem um acesso maior ao outro do que tem ao mundo real e sensorial, à
verdadeira vida, da qual um vidro impermeável continua te separando. É isso, o
pecado moral, e não é sequer culpa sua. Você é mais vítima do que culpado. O
pecado não é uma escolha moral, mas sim uma doença do espírito que o condena a
se restringir ao seu próprio comércio, ou seja, a eterna repetição. Você foi atingido
por essa doença, constrangido a residir confinado no labirinto do seu cérebro.
Você nunca ouve, ouviu ou sequer ouvirá outra coisa senão as fitas magnéticas
nas quais sua voz se imprime e se esvazia, em circuito fechado. Não crie ilusão
para si mesmo: é ela que você está ouvindo neste exato momento. É ela quem te diz
isso. Às vezes você se deixa enrolar, pois para suportar essa voz você teve
aprender a forjar outras, fazê-las ecoar, realizando verdadeiros colóquios
enquanto ventríloquo. Mas, na realidade, você está sozinho, assim como Palmer
Eldritch no mundo que ele esvaziou de substância e cujos habitantes carregavam os
seus estigmas.
* * *
Não
tenho como garantir que você esteja errado ao não acreditar em mim, mas posso
garantir que você também não teria acreditado em São Paulo. Você teria dado de
ombros, falado em epilepsia ou num acesso de um doidivanas, assim como um bando
de judeus devotos e gregos cultivados. OK, não tenho nada a dizer contra isso.
Também não tenho nada a dizer contra os ecologistas ferrenhos que, por mais que
eu ache uma extravagância conceder às árvores e aos animais os mesmos direitos
jurídicos que têm os homens, alegam que um tempo atrás não achávamos menos
extravagante a possibilidade de conceder este mesmo direito às mulheres e aos
negros. Não tenho nada a dizer contra as pessoas que, depois de admitir que aos
olhos de nossos ancestrais as tecnologias modernas pareceriam magia, obrigam-me
a admitir que as coisas que agora nos parecem ser inexplicáveis e
perturbadoras, como você colocou muito bem, e as quais eu escondo embaixo do
tapete com uma vassoura, um dia virão a integrar o campo da ciência: aqueles
que hoje negam a percepção extra-sensorial teriam condenado Galileu no passado.
Pessoalmente, eu desconfio disso.
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