sábado, 9 de junho de 2018

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FOTOGRAFIA





Faz frio, caminho olhando para baixo, tentando evitar o toque do vento em meus olhos, as lágrimas involuntárias afetam o foco do meu olhar. Por um momento meus pés parecem pertencer a outro corpo, vê-los assim, permite ao cérebro não senti-los como parte do todo que comanda.
Meu corpo agora imerso e acostumado à baixa temperatura integra a paisagem, o ar frio não respeita a roupa, toca a pele, levanta os poros. Escorre do nariz um líquido incolor e salgado.
No caminho sem destino que percorro, há uma casa de madeira, uma de suas janelas está escondida por uma pequena montanha de areia, uma menina solitária, por volta dos cinco ou seis anos, brinca com sua boneca, não, ela brinca com a areia, fazendo da pequena mão uma ampulheta e despejando grãos de tempo sobre o corpo do brinquedo.
Não domino seu idioma, mas isso não faz diferença, ela está calada, não percebe a minha presença, está inteira dentro do seu gesto, eu de longe, faço de sua ação também minha. Ela não usa blusa de frio, está apenas de camiseta e calça jeans, seu pequeno corpo nascido e acolhido no país de Dostoievsky, sente menos os efeitos temperatura do que o meu corpo tropical.
Seu rosto parece queimado, nesta hora meu astigmatismo é um inimigo da precisão. A menina está sozinha, mas não parece desamparada. Sentada sobre a areia, parece caber no Gênese, mas ao invés de barro e um sopro, ela tenta animar o corpo de plástico com os grãos que caem lentamente sobre o rosto de sua criatura.
Sinto ternura, esta coisa de gente boba, esta coisa que deixa a pele do corpo mais fina, mais vulnerável ao sentir da vida. Por um minuto penso se há alguém dentro da casa, alguém que possa acolhê-la se o mundo parecer grande demais, mas seu semblante me transmite concentração e tranquilidade.

Eu sigo em frente, penso que estou abandonando a pequena russa, mas quem segue procurando a comunhão do abrigo sou eu.   





Este texto é um diálogo, uma leitura da fotografia de Serguei Maksimishin.

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