“O fato
aconteceu no mês de fevereiro de 1969, ao norte de Boston, em Cambridge. Não o
escrevi de imediato porque meu primeiro propósito foi esquecê-lo, para não
perder a razão. Agora, em 1972, penso que, se o escrever, os outros o lerão
como um conto e, com os anos, talvez o seja para mim”.
“Tive de
repente a impressão (que segundo os psicólogos corresponde aos estados de
cansaço) de já ter vivido aquele momento”.
“– Posso lhe
provar que não minto. Vou lhe contar coisas que um desconhecido não pode
saber”.
“De repente me
lembrei de uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e
lhe dão como prova uma flor. Quando ele acorda, ali está a flor”.
“– Tudo isso é
um milagre – conseguiu dizer – e milagres dão medo. Os que foram testemunhas da
ressureição de Lázaro devem ter ficado horrorizados.”
Trechos do
conto “o outro” de Jorge Luis Borges.
“Nossos
caminhos cruzaram-se. Ulrica, naquela tarde, prosseguiria a viagem para
Londres; eu, para Edimburgo.
– Em Oxford
Street – disse – repetirei os passos de De Quincey, que procurava sua Anna
perdida em meio à multidão de Londres.
– De Quincey –
respondi – deixou de procurá-la. Eu, ao longo do tempo, continuo a procurá-la.
– Talvez – disse
em voz baixa – a tenhas encontrado.
Compreendi que
uma coisa inesperada não estava proibida para mim e lhe beijei a boca e os
olhos. Afastou-se com suave firmeza e declarou em seguida:
– Serei sua na
pousada de Thorgate. Peço-lhe que, por enquanto, não me toque. É melhor assim”.
“Acrescentou em
seguida:
– Ouça bem. Um
pássaro está prestes a cantar”.
Trechos do
conto “ulrica” de Jorge Luis Borges.
“Meu nome é Alexandre
Ferri”.
“Por indecisão
ou por negligência ou por outras razões, não me casei, e agora estou só”.
“De qualquer
modo, a tarefa que me impus não é fácil”.
“Trouxe consigo
uns cem livros, os únicos que, atrevo-me a afirmar, dom Alejandro leu no
decurso de sua vida. (Falo desses livros heterogêneos, que tive nas mãos,
porque num deles está a raiz de minha história)”.
“Planejar uma
assembleia que representasse todos os homens era como fixar o número exato dos
arquétipos platônicos, enigma que ocupou durante séculos a perplexidade dos
pensadores”.
“Sinto que
agora, e só agora, começa a história. As páginas já escritas não registraram
nada além das condições que o acaso ou o destino exigia para que acontecesse o
fato incrível, talvez o único de toda a minha vida”.
“– Levei quatro
anos para compreender o que lhes digo agora. O empreendimento que realizamos é
tão vasto que abarca, agora sei, o mundo inteiro”.
“O Congresso do
Mundo começou com o primeiro instante do mundo e prosseguirá quando formos pó.
Não existe um lugar em que não esteja”.
Trechos do
conto “o congresso” de Jorge Luis Borges.
“Às vésperas de
prestar o último exame na Universidade do Texas, em Austin, soube que meu tio
Edwin Arnett morrera de um aneurisma, nos confins remotos do continente. Senti
o que sentimos quando alguém morre: a angústia, já inútil, de que nada nos
teria custado ter sido melhores”.
“Uma das
laranjas da sobremesa foi seu instrumento para me iniciar ao idealismo de
Berkeley; o tabuleiro de xadrez bastou-lhe para os paradoxos eleáticos. Anos
mais tarde me emprestaria os tratados de Hinton, que busca demonstrar a
realidade de uma quarta dimensão do espaço, a qual o leitor consegue intuir
mediante complicados exercícios com cubos coloridos. Não me esquecerei dos
prismas e pirâmides que construímos no piso do escritório”.
“Meu tio era
engenheiro. Antes de se aposentar de seu cargo na Ferrovia, decidiu se
estabelecer em Turdera, que lhe oferecia as vantagens de uma solidão quase
agreste e da proximidade de Buenos Aires”.
“Meu tio, à
maneira de quase todos os senhores de sua época, era livre-pensador”.
“Aquela tarde
passei em frente à casa. O portão da grade estava fechado e umas barras
retorcidas. O que antes fora jardim era mato. À direita havia uma sanga de
pouca fundura e as bordas estavam pisoteadas.
Restava-me uma
jogada, que fui retardando durante dias, não só para senti-la de todo inútil,
mas porque me arrastaria à inevitável, à última”.
“Disse a mim
mesmo repetidas vezes que não existe outro enigma senão o tempo, essa infinita
urdidura do ontem, do hoje, do futuro, do sempre e do nunca”.
“Dentro haviam
tirado as lajotas e pisei num capim desgrenhado. Um cheiro doce e nauseabundo
penetrava a casa. À esquerda ou à direita, não sei muito bem, tropecei numa
rampa de pedra. Subi apressadamente. Quase sem refletir, fiz girar a chave de
luz”.
Trechos do
conto “there are more things” de Jorge Luis Borges.
“O conselho de
vender o que se possui e dá-los aos pobres é acatado rigorosamente por todos;
os primeiros beneficiados o dão a outros e estes a outros. É esta a explicação
suficiente da indigência e da nudez que também os avizinha do estado
paradisíaco”.
“Sei a Verdade,
mas não posso discorrer sobre ela. O inestimável dom de comunicá-la não me foi
concedido. Que outros, mais felizes que eu, salvem os sectários da palavra.
Pela palavra ou pelo fogo. Mais vale ser executado que dar a morte a si mesmo”.
“Era preciso
que as coisas fossem inesquecíveis”.
“Não há culpado
único; não há um que não seja um executor, sabendo ou não, do plano traçado
pela Sabedoria. Agora todos compartilham a Glória”.
Trechos do
conto “a seita dos trinta” de Jorge Luis Borges.
“Debatia-se o
problema do conhecimento. Alguém invocou a tese platônica de que já vimos de
tudo num mundo anterior, de modo que conhecer é reconhecer-se; meu pai, creio,
disse que Bacon tinha escrito que, se aprender é recordar, ignorar é de fato
ter esquecido”.
“Vocês nunca
estiveram em Lobos? Dá no mesmo; não existe um único povoado na província que
não seja idêntico aos demais, até no fato de se acreditar diferente. As mesmas
ruelas de terra, os mesmos terrenos baldios, as mesmas casas baixas, como se
feitas para um homem a cavalo ganhar importância. Numa esquina apeamos defronte
a uma casa pintada de azul-celeste ou de rosa, com algumas letras que diziam La
Estrella”.
“Havia bastante
gente; cerca de meia dúzia de mulheres com batas floridas iam e vinham. Uma
senhora de respeito, trajada inteiramente de preto, pareceu-me a dona da casa.
Rufino cumprimentou-a e disse:
– Aqui lhe
trago um novo amigo, que não é muito de montar a cavalo.
– Já vai
aprender, não se preocupe – respondeu a senhora.
Senti vergonha.
Para despistar ou para que vissem que eu era menino, comecei a brincar com o
cachorro, na ponta de um banco”.
“Chamavam-na
Cativa. Notei-lhe algo de índia, mas os traços eram um desenho e os olhos muito
tristes. A trança chegava até sua cintura. Rufino, que percebeu que eu a
olhava, disse-lhe:
– Conte de novo
o ataque de índios, para refrescar a memória”.
“– Quando me
trouxeram de Catamarca, eu era muito pequena”.
“As mulheres
eram levadas para Tierra Adentro e faziam de tudo com elas. Fiz o que pude para
não acreditar. Lucas, meu irmão, que depois foi ferido de lança, me jurava que
era tudo mentira, mas, quando uma coisa é verdade, basta que alguém a diga uma
única vez para sabermos que é verdade. O governo reparte mantimentos e erva
entre eles para mantê-los quietos, mas eles têm bruxos muito precavidos que
lhes dão conselho. A uma ordem do cacique não lhes custa nada atacar entre os
fortins, que estão espalhados”.
“Não sei
calcular o tempo”.
“Vi uma flor de
cardo numa sanga e sonhei com os índios. De madrugada aconteceu”.
“Depois a voz
da Cativa me chamou num sussurro.
– Estou aqui
para servir, mas às pessoas de paz. Aproxime-se que não vou lhe fazer nenhum
mal”.
“– É isso
mesmo. Ao cabo de umas poucas horas eu havia conhecido o amor e encarado a
morte. Todas as coisas são reveladas a todos os homens ou, pelo menos, tudo
aquilo que a um homem é dado conhecer, mas a mim, da noite à manhã, me foram
reveladas essas duas coisas essenciais”.
Trechos do
conto “a noite dos dons” de Jorge Luis Borges.
“A guerra é o
belo tecido dos homens e a água da espada é o sangue. O mar tem seu deus e as
nuvens predizem o futuro”.
“O Rei trocou umas
poucas palavras com os homens de letras que o rodeavam e falou desta maneira:
– De tua
primeira loa pude afirmar que era um feliz resumo de quanto se cantou na
Irlanda. Esta supera todo o anterior e também o aniquila. Eleva, maravilha e
deslumbra. Não a merecerão os ignaros, mas, sim, os doutos, a minoria. Um cofre
de marfim será a custódia do único exemplar. Da pena que produziu obra tão
eminente podemos esperar ainda uma obra mais alta”.
“O aniversário
voltou. As sentinelas do palácio observaram que o poeta não trazia manuscrito
algum. Não sem estupefação o Rei olhou para ele; quase era outro. Algo, que não
era o tempo, tinha sulcado e transformado seus traços. Os olhos pareciam olhar
muito longe ou ter ficado cegos. O poeta pediu-lhe que trocasse umas palavras
com ele. Os escravos esvaziaram a câmara.
– Não
executaste a ode? – perguntou o Rei.
– Sim – disse
tristemente o poeta. – Tomara Cristo Nosso Senhor me tivesse proibido.
– Pode
repeti-la?
– Não me
atrevo.
– Eu te dou a
coragem que te faz falta – declarou o Rei.
O poeta disse o
poema. Era uma única linha”.
“– Nos anos de
minha juventude – disse o Rei – naveguei rumo ao ocaso. Numa ilha vi lebréus de
prata que matavam javalis de ouro. Noutra nos alimentamos com a fragrância das
maçãs mágicas. Noutra vi muralhas de fogo. Na mais longínqua de todas um rio
abobadado e pendente sulcava o céu e por suas águas iam peixes e barcos. Essas
são maravilhas, mas não se comparam com o teu poema, que de alguma forma as
encerra”.
Trechos do
conto “o espelho e a máscara” de Jorge Luis Borges.
“Ainda havia
estrelas na madrugada. Atravessamos um espaço de terra com choças dos dois
lados. Tinham me falado de pirâmides; o que vi na primeira das praças foi um
poste de madeira amarela. Distingui numa ponta a figura negra de um peixe. Orm,
que nos acompanhara, disse-me que aquele peixe era a Palavra. Na praça seguinte
vi um poste vermelho com um disco. Orm repetiu que era a Palavra. Pedi-lhe que a
dissesse. Disse-me que era um simples artesão e que não a sabia”.
“Vi alguma
lágrima. O homem levantava ou distanciava a voz e os acordes quase iguais eram
monótonos ou, melhor ainda, infinitos. Eu teria gostado se o canto continuasse
para sempre e fosse minha vida”.
“Respondi:
– Não pude
ouvi-la. Peço-te que me digas qual é.
Vacilou alguns
instantes e respondeu:
– Jurei não
revelá-la. Além disso, ninguém pode ensinar coisa alguma. Deves procurá-la
sozinho”.
“Se o vento for
favorável, amanhã navegarás rumo ao sul”.
“Mais de uma
vez o destino me obrigou a matar. Um soldado grego desafiou-me e ofereceu a
escolha entre duas espadas. Uma era um palmo maior que a outra. Compreendi que
tentava me intimidar e escolhi a mais curta. Perguntou-me por quê. Respondi-lhe
que de meu punho ao coração dele a distância era igual”.
“– Também a mim
a vida deu tudo. A todos a vida dá tudo, mas a maioria ignora isso”.
“– Tu me
entendeste”.
Trechos do
conto “undr” de Jorge Luis Borges.
“– Que aconteceu
com os governos?
– Segundo a
tradição foram caindo gradualmente em decurso. Convocavam as eleições,
declaravam guerras, impunham tarifas, confiscavam fortunas, ordenavam prisões e
pretendiam impor a censura e ninguém no planeta acatava. A imprensa deixou de
publicar suas colaborações e efígies. Os políticos tiveram de procurar ofícios
honestos; alguns foram bons cômicos ou bons curandeiros. A realidade, sem
dúvida, terá sido mais complexa que este resumo”.
“– Esta é minha
obra – declarou.
Examinei as
telas e detive-me diante da menor, que representava ou sugeria um pôr do sol e
que encerrava algo infinito.
– Se lhe
agrada, pode ficar com ela, como lembrança de um amigo futuro – disse com
palavra tranquila”.
Trechos do
conto “utopia de um homem que está cansado” de Jorge Luis Borges.
“Sabem também
que lhes é proibido fumar em classe e que não podem se apresentar disfarçados
de hippies. Quanto ao meu frustrado rival, seria de péssimo gosto que eu o
criticasse”.
“Devo ao
senhor, Doutor Winthrop, uma explicação pessoal”.
“Ao contrário
dos demais, eu sei quase imediatamente quem é o outro. Aquela manhã me bastou.
Compreendi, meu querido Winthrop, que o senhor se rege pela curiosa paixão
americana da imparcialidade”.
Trechos do
conto “o suborno” de Jorge Luis Borges.
“Não procurava
entender o que ia lendo. Era livre-pensador, mas não deixava passar uma única noite
sem repetir o Pai-Nosso”.
“Sabia que sua
meta era a manhã do dia 25 de agosto. Sabia o número preciso de dias que tinha
de transpor. Uma vez alcançada a meta, o tempo cessaria, ou melhor, nada que
acontecesse depois importava. Esperava a data como quem espera a felicidade ou
a libertação”.
“De início quis
construir uma rotina. Matear, fumar os cigarros de fumo crioulo que enrolava, ler
e repassar uma determinada cota de páginas”.
Trechos do
conto “avelino arredondo” de Jorge Luis Borges.
“– É o disco de
Odin. Tem um único lado. Na Terra, não existe outra coisa que tenha um só lado.
Enquanto estiver em minha mão, serei rei.
– É de ouro? –
disse a ele.
– Não sei. É o
disco de Odin e tem um só lado.
Então senti a
cobiça de possuir o disco. Se fosse meu, poderia vender por uma barra de ouro e
seria um rei”.
Trechos do
conto “o disco” de Jorge Luis Borges.
“Afirmar que é
verídica é agora uma convenção de toda narrativa fantástica; a minha, no
entanto, é verídica”.
“Disse-me que seu
livro se chamava O Livro De Areia, porque nem o livro nem a areia têm princípio
ou fim”.
“– Isso não
pode ser.
Sempre em voz
baixa, o vendedor de bíblias disse:
– Não pode ser,
mas é. O número de páginas deste livro é exatamente infinito”.
“Depois, como
se pensasse em voz alta:
– Se o espaço
for infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo for infinito,
estamos em qualquer ponto do tempo”.
“Pensei no
fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente infinita e
sufocasse com fumaça o planeta”.
Trechos do
conto “o livro de areia” de Jorge Luis Borges.
Nota do Leitor
:: Jorge Luis Borges publicou O Livro de Areia no ano de 1975, aos setenta e
cinco anos de idade. Jorge Luis Borges viveu até o ano de 1986.
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