quinta-feira, 6 de junho de 2019

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A TÉCNICA DE FICAR VULNERÁVEL E ATENTA





O próximo instante é o desconhecido, com essa música clariciana agitando as cordas tendíneas deu o primeiro passo sem fazer caso de qualquer direção a tomar. Assim seguiu até quando começou a se perguntar pelo ritmo circadiano dos girassóis.

– Não é curioso que os organismos se adaptem às mudanças diárias da luz? – pensou equilibrando entre os dedos o alboroto de uma imagem que não se formava. Na verdade, se adaptam aos que os especialistas chamam de agente sincronizador, que pode tanto ser a luz, como a água (marés), o ar, etc., ou seja, qualquer elemento que tenha a força suficiente para compor uma ritmicidade entre as forças heterogêneas de um espaço (o espaço é uma molécula de sensibilidade). Que a vida tenha uma estrutura cíclica não quer dizer que ela seja igual a cada dia, porque o que se repete é o movimento de diferenciar; girar é abrir um tempo-aqui, tempo que vibra em torno de sua fissura, tempo-espaço descosturado das origens, original.
– Dar o primeiro passo é esquecer o caminho – disse ela sem saber em que comprimento de ondas acomodar as palavras – começar é eliminar todos os pressupostos; começar emerge de um ponto cego onde explodem os nomes e as coisas exigindo que o pensamento estenda um território além daquilo que se sabe; caminhar é o delírio do passo, do limite, é uma desmesura. O traço, o rastro da vista faz visível e deixa invisível o gesto e a gestação – foi o que ela conclui ao perceber que havia chegado no alto de uma montanha. Sigo algo que há que criar e que nomeia um processo – completou como maneira de encarar a beleza vegetal que enroupava as pedras do espinhaço. O vento pousou nos seus cabelos desenhando redemoinhos perfeitos: ciclos abrindo outros ciclos, circulação, fluxos. Será que dentro de um milhão de anos se poderá ver o ventre mole e fluido que sustenta a carcaça geológica das rochas?  - insistitiu, olhando com muita ternura o pigmento amarelo depositado na passagem de insetos, bactérias e fungos pelos limbos das folhas.
Quando a ventania agita a folhagem é possível acompanhar a oscilação da vegetação entre um fechamento territorial e uma abertura cósmica (dualidades ondas-partículas simultaneamente dadas). O produto desse mecanismo não é manipulável, é a pulsação das coisas, a malha sensitiva do movimento. Cada fenômeno, diz Simondon, é uma exigência de manifestação amplificante no qual cada realidade local se comunica com o universal, no qual cada instante é a origem de um eco que se multiplica diversificando-se. O próximo instante é o desconhecido; átomos de sensações que latejam provocando perturbações nas realidades, comunicando o impossível. Esse lugar é tão antigo que me dá a impressão que é a primeira que vez estou aqui: um tempo nascente que se extingue sem esboço, sem descrição, sem conhecimento, nos polirritmos caósmicos do momento, hic et nunc – foi o que ela acabara de aprender, ali, de pé como um talo de girassol diante da montanha descomunal, corcunda, ancestral, inaugural, sensível e atenta à alegria infatigável do vento que faz retornar o incógnito sopro dos astros e dos magmas. 


Este post pertence ao projeto : Um diálogo entre uma imagem criada por mim (Fernando Rocha) e um texto literário. O texto foi criado por Carla Carbatti, que em suas próprias palavras é: sou qualquer carla, como tantas Carlas que há, filhas de Marias. nasci onde brilham as estrelas de Três Pontas e jorram luz até BH.  disse amor e atravessei o Atlântico.  hoje habito um Campus Stellae. amo, amo demasiado duas menininhas de olhos acastanhados, mais brilhantes que o sol. nos feriados solto pipas e escrevo com todos os átomos. nos dias de feira faço um mapa losing stepsdas heterotopias de Clarice, pra isso que chamam de tese, mas eu chamo mesmo é de saltar no abismo com um verbo infinitivo nos lábios ...

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