CRÔNICA N° II
Três revelações na primeira quarta-feira de dezembro
Parte I: a face de Deus (Eu sou o que sou)
Para quem, como eu, sempre manteve acesa curiosidade pelos assuntos celestes, a primeira quarta-feira de dezembro foi um dia de revelações.
Logo pela manhã, quando nem bem havia terminado com a manteiga no pão, já me dispus em luto em nome da voz do insofismável Lombardi; sim, aquela mesma, das tardes de domingo do Sílvio: – É com você Lombardi. – Pois não, Patrão...
Confesso que sofri um bocado com a notícia, afinal, aquela voz sempre soou como uma trilha sonora da minha infância: era eu, menino, a brincar pelo chão da sala, era minha avó, novamente menina, a tricotar pelo sofá e era o Lombardi, escondido na televisão, a nos espionar. O que explica todo este meu receio, afinal, em última instância, o desaparecimento daquela voz representa, de algum modo, a dissipação de parte da minha infância.
Além do mais, sempre achei que se fosse o caso de Deus possuir alguma voz, ela deveria ser igualzinha à do Lombardi: o mesmo timbre, a mesma afinação, o mesmo poder de chocar a atenção dos ouvidos e, sobretudo, a mesma face misteriosa. Talvez por isso, nunca me tenha sido possível impedir – malgrado meus esforços – que as mãos executassem o sinal da cruz, todas as vezes que sua voz me apanhava desprevenido.
Durante décadas, acreditei que o Lombardi tinha a mesma cara de sua voz, ou que nele, ambas, cara e voz, constituíssem uma e mesma coisa. Mas, como já lhes disse, o dia foi mesmo de revelações, pois, para bem ou para mal, a notícia fúnebre da morte de sua voz trouxe consigo a expressão de um semblante. Não me avisassem e nunca imaginaria que o rosto estampado nos jornais tinha como dona a voz do Lombardi; para ser sincero, ainda agora me custa um pouco ligar a cara à voz; e digo mais, não vai ser tarefa nada fácil – senão impossível – vincular aquela fisionomia, que sempre me aparecerá estranha, à intimidade de meus mais tenros anos. Pudesse eu escolher e, certamente, optaria por um enterro menos imagético e mais sonoro para o pobre do Lombardi, alguma coisa mais adequada para quem somente existiu na freqüência de suas cordas vocais, algo semelhante à impressão de um simples abaixar do volume.
Mas, se a morte resolveu interpor uma imagem entre nós e a voz do Lombardi, ao menos é possível agarrar o lado bom da coisa, pois, se, realmente, for o caso de qualquer semelhança entre sua voz e a voz de Deus, isso significa que, de agora em diante, talvez estejamos mais perto de conhecermos os traços de nossa criação.
borboletA
Borboleta é a assinatura literária de Fábio Amorim de Matos Júnior.
Doutorando em filosofia, Fábio Amorim atua como professor universitário.
Borboleta, por sua vez, é escritor independente, acaba de publicar seu primeiro livro de contos – “Pára-raio de Loucos” – e mantém vivo um sítio sobre literatura e outras coisitas mais:
http//:pararaiodeloucos.blogspot.com
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