segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

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FILOBÔNIO FILÓ - parte 02


- a entrevista -

Depois de tentar por três longos dias, Filó consegue
 finalmente uma entrevista com o escrevente do Setor de Certidões
Públicas do Departamento de Certidões Públicas do Estado. Atrás
da mesa do homem, pendurada na parede a frase de feira:
Servimos Bem Pra Servir Sempre.
Começa então a entrevista:
- O senhor quer?
- Uma certidão – diz Filó.
- Certidão. Do quê?
- Nascimento.
- Nascimento. Nome.
- Filobônio Filó.
- Filó. Nasceu quando?
- No dia em que vim ao mundo.
- Mundo. Onde?
- Aqui mesmo.
- Mesmo. Cidade.
- Esta.
- Esta. Pai.
- Ainda vivo.
- Vivo. Mãe.
- Desconhecida.
- Desconhecida. Me passa o RG.
- Não tenho RG.
- Não tem RG. O senhor vem aqui, ocupar o meu precioso
tempo, sem RG?
- Porque eu preciso da certidão de nascimento pra tirar o RG.
- Desde quando?
- Desde sempre, ué! Aliás, foram vocês que inventaram isso.
- Sem RG, pra mim o senhor não existe.
- Mas eu existo, pô!
- Então me traz o RG. Próximooooooo...
Sem lenço sem documento, um Filobônio de pai ainda vivo e
de mãe desconhecida caminha pelas ruas da cidade. E pensa. E se
pensa existe. Não é assim?


- vizinhos

Os vizinhos de Filó, que não têm mais o que fazer das próprias
vidas, vivem lhe arrumando nomes e ocupações nada simpáticas:
- Pobre diabo sem eira nem beira – diz um.
- Cabra safado vagabundo – diz outro.
- Fiscal do imposto de renda – arrisca outro mais ousado.
- Doce feito um quindim – arremata a velhinha diabética.
Filó, que já está careca de saber as opiniões a seu respeito,
não as confirma nem tampouco tenta provar o contrário. Prefere
manter o silêncio de esfinge, deixando atrás de si apenas as
pegadas do mistério.


- no princípio era a pedra

Era uma vez – conta Filó – uma pedra que Deus plantou no
chão. Aí choveu por sete dias e sete noites e da pedra brotou um
prédio, um prédio só, triste de dar dó. Lá de cima, entristecido
com a tristeza do prédio, Deus mandou um helicóptero espalhar
sementes de pedra por toda a terra. Aí choveu um dilúvio e então
nasceram as cidades. E aquilo que no princípio era pedra hoje é
caos.



- filosóficas*

- tecnologia é o botão que a gente aperta pra desligar o caos –
ou pra ligar a beleza




* Poemas, rabiscos e reflexões extraídos do Caderno Secreto (mas nem tanto) de Filó.



- tecnologia royal

Os slogans publicitários são impiedosos:
- Micro: programe-o ou deixe-o
- Teclado sem fio, você ainda vai ter um
- O Pentium é nosso
- digito ergo sum!
Filó, por causa dessas e de outras pressões mais, se sente um
autêntico homem das cavernas. Viva em paz com a sua antiga
máquina de escrever – uma Royal – até o momento em que o
mundo foi tomado pela febre da informática. Fazer o quê?
O óbvio: na salinha apertadinha Filó enfia um moderno
microcomputador com tudo a que tem direito: disco rígido, disco
flácido, impressora, memória RAM REM RIM, o diabo a quatro. A
tudo isso acrescenta mouse, cat, fish e outros bichos, porque
computador completo tem que ser completo. Feliz, ele observa
com orgulho a nova aquisição, e já bola uma maneira de comunicar
ao mundo que não é mais um neandertal do teclado.
Dias depois, os poucos amigos de Filó recebem, não pelo email
mas sim pelo correio, o convite para o début do micro – convite
datilografado na Royal, é bom que se diga.




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