quarta-feira, 3 de março de 2010

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Benzodiazepínicos - Bruna Maria

Por Bruna Maria.


De manhã – penteio o cabelo embaixo do chuveiro e os meus olhos ardem. Fecho-os. Fricciono as pálpebras logo em seguida, até que passe o incômodo. Depois abro os meus olhos: embaçados. Continuo o movimento de desembaraçar, fio por fio, todo o cabelo – sem pressa. Lembro que, há dias, não lavo a cabeça. Então continuo me penteando enquanto a água corre para o ralo, ruidosamente. Em menos de cinco minutos, tenho em minhas mãos inúmeros fios embaralhados, como novelos de cabelo humano perdidos entre os meus dedos. Meu cabelo cai. A cada dia que passa meu cabelo cai mais. Um dia – em breve –, ficarei calva. Mas não me importo: cabelo é célula morta. Deixo-os cair. (Ou, se não caem enquanto penteio debaixo d’água, arranco-os eu mesma com as mãos, disfarçadamente. E deixo que escorram até o ralo que, no dia que entupir, não escoará a água do meu banho e me fará afogar enquanto rearranjo, despreocupadamente, as minhas poucas madeixas.)

De tarde – estávamos sentados no banco da praça. Cada um com seu picolé em mãos. Os pés do garoto não tocavam o chão, ficavam pendurados. O garoto é meu filho. Nas tardes de verão ele quer tomar sorvete e ver os rapazes soltarem pipas. As pipas sobem por uma linha cheia de sangue – e dizem que um sujeito teve a cabeça decepada por ela, ontem, enquanto passava veloz em sua motocicleta. O meu picolé está derretendo e eu perdi o controle. Tudo escorre pelas minhas mãos e me mela os dedos. Sinto pavor. O garoto continua com seu sorvete. Às vezes olha para mim, como se esperasse algo além; mas eu já lhe dou picolés – o que mais ele pode querer?

De noite – a vizinha veio saber se eu preciso de algo. Eu só queria ter um bom jantar, e ninguém entende. Ela diz que eu devo levantar e ir prepará-lo, então. E eu acho – mas não digo – que eu devia tê-lo já pronto, feito por alguém, diante de mim. Chamam de “corpo mole”. Eu não sei de que eu chamo. Peço para a vizinha bater a porta quando sair, peço que ela saia. Eu não olho, mas sei que ela balança a cabeça reprovando o que vê, e leva o meu filho para jantar na casa dela. Então eu viro para o lado e peço a deus que me venha sono e com ele um bom sonho. Para que eu acorde e penteie o cabelo na água da manhã do dia seguinte; ou para que eu me afogue, na mesma água, entre os mesmos fios de cabelo.


Pintura: Claus Heinecke

1 Comentário

Mayra

Nossa, Bruna, adorei esse texto!
Sabe o que essa situação me levou? Aquela personagem do The Hours, a Laura Brown. Me lembrou muito!