quarta-feira, 28 de abril de 2010

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AINDA BEM, QUE BEM-TE-VI - Noélio A. de Mello




Se hoje precisamos tomar uma decisão importante, não deixemos para depois, não arrisquemos acreditar no tempo, no que ainda não podemos ver, sentir. Nada nos afirma
que ele não possa ser traiçoeiro e que nos negue amanhã o que hoje prometeu. Esqueçamos, por um momento, do futuro e realizemos agora o que não é necessário esperar, o que ainda podemos consertar, remediar, costurar.

Porque negar o alívio para tantos lábios sedentos, se temos, hoje, na palma das nossas mãos uma receita miraculosa que pode curar ou amenizar uma dor alheia? Se hoje podemos decidir enquanto ainda somos brisas suaves, calma rara, amor em profusão, seria ilógico esperarmos o amanhã onde poderemos ser uma tempestade desatinada, a negação da vida, o desamor, o tédio, a mentira de todas as promessas.

Se hoje somos uma paixão sem freios, não esperemos ser o arrependimento sem cura e que pode chegar depois pelas mãos do futuro. O que interessa é o hoje, o agora. O depois não nos pertence. Se hoje somos luz, seria imprudente tomar decisões no meio das trevas que talvez estejam caminhando aceleradas nos braços desafiadores do tempo.

Nessa minha ânsia incontida de querer sempre apreciar o parto da alvorada, certo dia,
admirava, extasiado, entre a folhagem de uma velha mangueira, um bem-te-vi alimentando seu filhote na sua doce tarefa diária trazendo no bico a seiva da vida. Num
de seus pousos, entretanto, o ninho se soltou e começou a tombar lentamente e logo começou a cair quase em queda livre.

Naquele momento eu era uma triste e solitária testemunha do findar do espetáculo da vida para aquele pequenino pássaro ainda incapaz de ruflar suas asas e ganhar o sol da liberdade que se espreguiçava pelo espaço sem fim. Tudo corria como a velocidade de um dardo em movimento. Meu coração pulsava acelerado. Meu olhar mirava aquela cena que antecipava um final de vida, a inutilidade total.

Alguns galhos daquela secular mangueira tentavam amortecer, mesmo que fosse por alguns segundos, o vôo sem asas daquele ninho e seu inocente passageiro. O bem-te-vi que há alguns segundos atrás construía uma vida, ofertava o futuro para seu filhote, girava em um vôo alucinado em volta daquele sonho que desabava diante de seus olhos, de suas asas, como se quisesse contar para sua cria que não desistira de salvar sua vida.

Uma última folhagem daquela gigantesca árvore, como se mãos tivesse, cravou suas
unhas naquela pequena casa tecida com muitos fios de suas próprias folhas e evitou o que parecia inevitável. Segurou o ninho pelo fiapo de um galho pendente. Aquele milagre, entretanto, não seria por muito tempo. Qualquer brisa mais forte logo o derrubaria.

O bem-te-vi sentiu naquele momento que era a derradeira oportunidade de salvar o filhote e voou como uma flecha até o galho salvador e, lentamente, foi recolocando com o seu bico, na posição horizontal, aquele berço de gravetos que parecia pendurado por dedos divinos. Num trabalho acelerado, rapidamente reforçou a cama da vida do seu filhote e deu-me a soberba impressão de ficar ao seu lado comemorando a sua própria coragem e a determinação de não desistir do que parecia ser impossível deter.

Com o olhar brilhante diante dos segredos da vida aprendi com aquele pássaro uma
grande lição de perseverança, de ousadia. Ele não esperou o segundo seguinte. Tomou a
decisão no momento certo, porque sentiu na sua sabedoria, no seu instinto, que o tempo.
era curto demais e se não fosse audaz o suficiente para preservar seu filhote naquela fração de segundos, o depois poderia ser dolorosamente tarde, infinitamente tarde para continuar a ser feliz em seus rasantes voos matinais.

Ainda bem que tenho acordado absolutamente cedo para apreciar a vida. Ainda bem, que pude ver um bem-te-vi, eternalizar na minha alma, um ensinamento de Deus, uma lição de vida. Ainda bem, que tenho a consciência plena, que muitas vezes, o depois, o amanhã, podem ser rigorosamente apenas uma dor do ontem.

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