"Como se há de tirar a fotografia desta
sociedade, sem lhe copiar as feições?"
José de Alencar
Os versos, além de forma sublime da escrita, facilitam a memorização: nas obras do passado, a escrita era prescindível. E o foi até o século XVIII, quando explodiu finalmente com o surgimento dos romances ingleses.
Vinculada à escrita por sua extensão, a prosa só se tornou hegemônica com o surgimento e a consolidação do jornalismo. No Brasil a introdução da tipografia se deu em 1808, com a chegada da família real e entre 1843 e 1844, devido à sua proliferação e à difusão dos jornais, surgiu no Brasil o romance. “O eixo do romance oitocentista é, pois, o respeito inicial pela realidade, manifesto principalmente na verossimilhança que procura imprimir à narrativa” (CANDIDO, 111).
Nessa época José de Alencar iniciou seu curso de Direito em São Paulo e, quando retornou ao Rio, passou a advogar, a colaborar no Correio Mercantil e a escrever para o Jornal do Commercio os folhetins que, em 1874, reuniu sob o título Ao Correr da Pena. Talvez não mais nos modelos clássicos, na tragédia, na comédia, e sim no romance se pudesse tratar de imitação.
Alencar “fotografou”, em Diva, a realidade nacional do Brasil em meados do século XIX. Escreveu romances que se enquadravam muito mais nas temáticas da época que seus contemporâneos: utilizou a imitação como reprodução e valeu-se da técnica realista para trazer a transcendência romântica a alguns de seus romances.
Acerca da imitação, assinala Roberto Schwarz: “Finalmente, considere-se o próprio movimento da imitação, que é mais complicado do que parece. No prefácio de Sonhos d’ouro, escreve Alencar: “Tachar esses livros de confeição estrangeira é, relevem os críticos, não conhecer a sociedade fluminense, que aí está a faceirar-se pelas salas e ruas com atavios parisienses, falando a algemia universal, que é a língua do progresso, jargão erriçado de termos franceses, ingleses, italianos, e agora também alemães./Como se há de tirar a fotografia desta sociedade, sem lhe copiar as feições?” (SCHWARZ, 2000, 46)
O caráter de veracidade próprio da literatura alencariana aparece também nas cartas destinadas aos leitores, com sentenças bem estruturadas, vocabulário bem escolhido, dirigido a um público letrado e seleto: a classe burguesa em ascensão no Brasil no século XIX. A cidade se modernizava desde a vinda da Coroa, moldando-se aos costumes europeus e demarcando os limites entre o privado e o público.
A constituição de um sistema de gêneros (o texto é uma forma de gênero, o salão é um gênero e o romance é o gênero que absorve esses modelos) possibilitou a José de Alencar exprimir-se nos principais tipos de textos cultivados no período oitocentista: o folhetim, o jornal, o romance e o teatro.
Nos folhetins se tratava do cotidiano da vida e da cidade: fatos sociais, artísticos e políticos, em narrativas leves mesclavam jornalismo e literatura. Se no teatro havia um pacto de que se estava indo ver uma encenação, no.salão não existia a mediação da ficção. Contudo, tanto o romance e o jornal quanto a carta, o teatro e o salão tinham a vida cotidiana – o privado e o público - como tema. (Vide Anexo 1)
Até o século XIX o Eu não representava o autor (aquele que subjetivamente era responsável pelo texto): era uma instância vazia. No século XIX emerge a subjetividade e o romance vai ser o grande vínculo da intimidade das relações sociais e do próprio Eu. Mas era comum delegar a obra a um pseudônimo, a um autor ficcional. G.M. é quem assina Diva, assim como os outros dois romances (Lucíola e Senhora) que fazem parte da trilogia conhecida como ‘Perfis de mulher”. José de Alencar, numa delegação autoral, não se dizia o autor.
Esses perfis femininos, Alencar elaborou-os fazendo uso do conceito de verossimilhança, com a intenção de convencer o leitor de que se tratava de um relato verídico e não uma narrativa de ficção. A imitação era eficaz: além de atender à preocupação com a realidade, ponto essencial do romantismo, garantia certa isenção do autor.
Em Diva, na Carta ao leitor, Paulo – o personagem de José de Alencar em Lucíola, que já havia enviado a G.M. o primeiro perfil de mulher - escreve, encaminhando um novo perfil: “Um belo dia, recebi pelo seguro uma carta de Amaral; envolvia um volumoso manuscrito, e dizia: ‘Adivinho que estás muito queixoso de mim, e não tens razão. Há tempos que escreveste, pedindo-me notícias de minha vida íntima: desde então comecei a resposta, que só agora concluí: é a minha história numa carta’”.
Publicado em 1864, Diva tem sido objeto de estudo de maneira inversamente proporcional à repercussão que causou à época de seu lançamento. Conta Alencar em Como e Por Que sou Romancista: “Escrevi Diva que saiu a lume no ano seguinte, editada pelo Sr. Garnier. Foi dos meus romances - e já andava no quinto, não contando o volume d’As Minas de Prata - o primeiro que recebeu hospedagem da imprensa diária, e foi acolhido com os cumprimentos banais da cortesia jornalística. Teve mais: o Sr. H Muzzio consagrou-lhe no Diário do Rio um elegante folhetim, mas de amigo que não de crítico.”
Emília, a diva de G.M., é a porta-voz das emoções humanas em estado bruto, sem a contaminação social que rejeitava convicções que não fossem adequadas e educava para a conveniência. Uma beleza quase etérea como o seria a de uma deusa do Olimpo, mas também como uma diva era dada à impulsividade e sem limitações em seus arroubos. Da mesma maneira que Emília era jovem doce e compassiva, era rebelde, mal educada e voluntariosa. Ao mesmo tempo em que geria bem a casa e era cortejada nos salões, não se preocupava com a maledicência e se encantava com a natureza como uma menina aventureira. Observava as normas e hábitos burgueses, mas mantinha uma natureza simples que abrigava um espírito romântico que idealizava e amava o Amor.
Diz Roberto Schwarz: “Em Diva, a Medicina é um sacerdócio, mas o doutor passa o tempo namorando uma menina ingrata.” (SCHWARZ, 2000, 69). Uma constatação correta que nos fez levantar questões e levou-nos a algumas inferências, que expomos a seguir. Augusto, o doutor, é o médico que, com Emília - a menina ingrata-, protagoniza o livro. Não corrompido nos costumes mas distante de ser uma alma pura, tem sentimentos mais elaborados, é um jovem cujas mágoas o levam ao ressentimento e à retaliação. Se sua via de expressão é a da veneração (à Emília, à profissão) talvez esteja oculto o desejo íntimo de ser ele o venerado. Apropriado e talvez intencional o nome Augusto que, em latim significa "O venerado", "O sublime", "O máximo".
Os demais personagens, praticamente pinceladas no quadro que Alencar pinta, realizando uma representação crítica da sociedade da época, de forma descritiva e detalhista. Sobre o pai de Emília, Sr. Duarte, diz Augusto Amaral, o narrador-personagem: “representa na família um papel importante pela sua nulidade, é negociante; trabalhou toda a vida para enriquecer; depois de rico só vive para ser milionário. Essa febre nele não é ambição, mas destino. Quer a riqueza para seus filhos, parentes e amigos; para ele conserva a antiga mediocridade. Nunca até hoje o Sr. Duarte admitiu a menor alteração em seu sistema de vida, e nos hábitos do homem pobre e laborioso, que fora.” A tia e a prima de Emília cumprem seu papel de boas mulheres nesse mundo urbano com valores, hábitos e costumes condizentes com uma sociedade movida pelo dinheiro, preocupada com a ascensão social por ele conferido e cada vez mais afinada com o imaginário da burguesia internacional.
Com o retrato que José de Alencar compõe da vida urbana da burguesia e suas relações sociais “passamos a viver vicariamente nessa sociedade e entender-lhe, então, os mecanismos mais sutis que dão movimento ao exercício do cotidiano” (RIBEIRO). Mecanismos sutis que, se não forjassem elos que poderiam ser grilhões a unir de forma paternalista, ou exprimindo uma situação de dominação, eram, no mínimo, constrangedores. O favor e a gratidão, por exemplo, tema que Alencar já abordara em Ao Correr da Pena, à página 30 - “aqueles honrados cidadãos de grande obséquio que nos faziam em servir-nos de graça. O excesso em tudo, porém, é prejudicial, e o benefício, quando não é pedido, é incômodo.” - é por ele retomado em Diva:
“Pois não, Julinha! Pode haver nada menos generoso e mais ridículo do que um indivíduo, porque prestou um serviço, mesmo que salvasse a vida a alguém... arrogar-se uma certa superioridade sobre o outro e julgar-se com direito a tudo(...) Não é uma espécie de humilhação que se impõe àqueles que não pediram, nem desejavam seus favores, e talvez os podiam pagar?” (Diva, capítulo VI)
Diz Antonio Cândido: “A consciência social dos românticos imprime aos seus romances esse cunho realista. (...) Este acentuado realismo (...) estabelece no romance romântico uma contradição interna, um conflito por vezes constrangedor entre a realidade e o sonho” (CANDIDO, 115).
Apesar de algumas incongruências e certa inconsistência, Alencar compõe um romance no qual obtém verossimilhança (capacidade de tornar ficção semelhante à verdade). Uma fotografia que alcança com certa facilidade, a qual, acreditamos, decorra também da proximidade que há entre o narrador-personagem e a narrativa.
“A ficção realista de Alencar é inconsistente em seu centro; mas a sua inconsistência reitera em forma depurada e bem desenvolvida a dificuldade essencial de nossa vida ideológica, de que é efeito a repetição. Longe do ocasional, é uma inconsistência substanciosa. Ora, repetir ideologias, mesmo que de maneira concisa e viva, do ponto de vista da Teoria é repetir ideologias e nada mais. Já do ponto de vista da literatura, que é imitação – nesta fase ao menos – e não juízo, é meio caminho andado.” (SCHWARZ, 2000, 68)
Também está presente em Diva o dilema do romantismo brasileiro: um sentimento com valor de eternidade (presente no amor transcendental) não podendo coexistir com o amor carnal, a não ser no casamento.
“Augusto! Seu amor é um nobre e santo amor, como eu pedia a Deus que me desse a fortuna de inspirar!... Responder-lhe com uma dessas afeições banais a que o coração reserva apenas as horas vagas que deixam o cálculo e a vaidade, seria uma profanação indigna!... Espero e lhe peço que espere, para não causar por um engano a sua e minha desgraça; para não ser obrigada a dizer-lhe um dia: “Eu me iludi! Esta vida que lhe dei, não a podia dar, não me pertencia, mas àquele de quem a roubei e agora a reclama! Traí a um, menti ao outro; falhei meu destino; só me resta morrer!” Eis por que eu lhe digo que espere.” (Diva, capítulo XVII)
Tendo como cenário a vida da sociedade burguesa na cidade do Rio de Janeiro do Segundo Reinado, Diva é um romance urbano que retrata seus costumes e tem, no Amor (sublimado, idealizado, capaz de renúncias, de sacrifícios e heroísmos) seu enredo, concebido segundo a imaginação e o sentimentalismo romântico. O Belo e a natureza – que elevam a pessoa a uma dimensão sublime – também se inserem nessa “fotografia”:
“Como está estrelada a noite!... Ali naquele silêncio a alma pode abrir-se; não é verdade? Não há rumor que a assuste, nem esse vapor que abrasa!... Eu gosto da noite!... É mais doce que o dia. É quando eu sinto, quando sei melhor sentir, é à noite; sobretudo nas noites escuras, como esta, em que só há estrelas! O sol me alegra, como a grande claridade das salas, e me anima. Eu creio que as horas, em que sou mais bonita, é ao meio-dia no campo e à meia-noite no baile.” (Diva, capítulo XI) (grifos nossos)
Diva é um romance basicamente romântico, embora apresente alguns elementos característicos do Realismo. A narrativa que, através da imitação, busca reproduzir a realidade, vai além de retratar a burguesia do Rio de Janeiro. Nas entrelinhas está a crítica, a denúncia da hipocrisia, da ambição e desigualdade social.
Em Diva, José de Alencar deixa-nos perceber uma profundidade psicológica em seus personagens principais embora não revele, por uma análise psicológica, seus conflitos interiores e suas almas, como faz em Lucíola.
Sonia Regina
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O ensaio original foi publicado na íntegra em Pousio (fevereiro/09)
Anexo 1.
No esquema abaixo, elaborado pelo professor Marcus Vinícius (UERJ), a representação do sistema de gêneros que possibilitou José de Alencar exprimir-se nos principais tipos de textos cultivados no período oitocentista: o folhetim, o jornal, o romance e o teatro.
Bibliografia.
SCHWARZ, Roberto. A importação do romance e suas contradições em Alencar. In: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1992.
CÂNDIDO, Antonio – Um Instrumento de Descoberta e Interpretação. In:Formação da Literatura Brasileira, vol.2.
Internet.
ALENCAR, José. Diva. Textos literários em meio eletrônico. Biblioteca Digital de Literatura. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística. http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/index.html
______________. Como e porque sou romancista. In: Romances Ilustrados de José de Alencar. Textos literários em meio eletrônico. Biblioteca Digital de Literatura. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística. http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/index.html
RIBEIRO , Luis Filipe - Se me explico...In: Mulheres de Papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. http://www.rbleditora.com/revista/livro/Se_me_explico.html
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