segunda-feira, 3 de maio de 2010

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A estória do Boneco de Sal - Leonardo Boff



Leonardo Boff.
Teólogo.
[2.5.10]


- A estória do Boneco de Sal -



Nos últimos tempos temos dedicado nossas reflexões quase que exclusivamente às questões ambientais e aos desafios que as mudanças climáticas implicam para o futuro de nossa civilização, para a produção e o consumo.
Nem por isso devemos descurar os problemas cotidianos, a construção continuada de nossa identidade e a moldagem de nosso sentido de ser. É uma tarefa nunca terminada. Entre muitas, duas provocações estão sempre presentes e temos que dar conta delas: a aceitação dos próprios limites e a capacidade de desapegar-se.
Todos vivemos dentro de um arranjo existencial que, por sua própria natureza, é limitado em possibilidades e nos impõe barreiras de toda ordem, de lugar, de profissão, de inteligência, de saúde, de economia, de tempo. Há sempre um descompasso entre o desejo e sua realização. E às vezes nos sentimos impotentes face a dados que não podemos mudar como a presença de um esquizofrênico com seus altos e baixos ou um doente terminal. Temos que nos resignar face a esta limitação intransferível. Nem por isso precisamos viver tristes ou impedidos de crescer. Há que ser criativamente resignados. A invés de crescer para fora, podemos crescer para dentro na medida em que criamos um centro onde as coisas se unificam e descobrimos como de tudo podemos aprender. Bem dizia a sabedoria oriental:"se alguém sente profundamente o outro, este o perceberá mesmo que esteja a milhares de quilômetros de distância". Se te modificares em teu centro, nascerá em ti uma fonte de luz que irradiará para os outros.
A outra tarefa da autorealização é a capacidade de desapegar-se. O zenbudismo coloca como teste de maturidade pessoal e liberdade interior a capacidade de desapegar-se e de despedir-se. Se observamos bem, o desapego pertence à lógica da vida: despedimo-nos do ventre materno, em seguida, da meninice,da juventude, da escola, da casa paterna, de parentes e da pessoa amada. Na idade adulta despedimo-nos de trabalhos, de profissões, do vigor do corpo e da lucidez da mente que irrefragavelmente vão se desgastando até despedirmo-nos da própria vida. Nestas despedidas deixamos um pouco de nós mesmos para trás.
Qual é o sentido deste lento despedir-se do mundo? Mera fatalidade irreformável da lei universal da entropia? Essa dimensão é irrecusável. Mas será que ela não guarda um sentido existencial, a ser buscado pelo espírito? Se, fenomenologicamente, somos um projeto infinito e um vazio abissal que clama por plenitude, será que esse desapegar-se não significa criar as condições para que um Maior nos venha preencher? Não seria o Supremo Ser, feito de amor e bondade, que nos vai tirando tudo para que possamos ganhar tudo, no além vida, quando nossa busca finalmente descansará?
Ao perder, ganhamos e ao esvaziarmo-nos ficamos plenos. Dizem por aí que esta foi a trajetória de Jesus, de Buda, de Francisco de Assis, de Gandhi, de Madre Teresa e de outros.
Talvez um estória dos mestres espirituais antigos nos esclareça o sentido da perda que produz um ganho. "Era uma vez um boneco de sal. Após peregrinar por terras áridas chegou a descobrir o mar que nunca vira antes e por isso não conseguia comprendê-lo. Perguntou o boneco de sal:" Quem és tu? E o mar respondeu:"eu sou o mar". Tornou o boneco de sal: "Mas que é o mar?" E o mar respondeu:" Sou eu". "Não entendo", disse o boneco de sal. "Mas gostaria muito de compreender-te; como faço"? O mar simplesmente respondeu: "toca-me". Então o boneco de sal, timidamente, tocou o mar com a ponta dos dedos do pé. Percebeu que aquilo começou a ser compreensível. Mas logo se deu conta de que haviam desaparecido as pontas dos pés. "Ó mar, veja o que fizeste comigo"? E o mar respondeu:"Tu deste alguma coisa de ti e eu te dei compreensão; tens que te dares todo para me compreender todo". E o boneco de sal começou a entrar lentamente mar adentro, devagar e solene, como quem vai fazer a coisa mais importante de sua vida. E na medida que ia entrando, ia também se diluindo e compreendendo cada vez mais o mar. E o boneco continuava perguntando: "que é o mar". Até que uma onda o cobriu totalmente. Pode ainda dizer, no último momento, antes de diluir-se no mar: "Sou eu".
Desapegou-se de tudo e ganhou tudo: o verdadeiro eu.


Leonardo Boff é autor de Tempo de Transcendência, 2009 (Vozes).



6 comentários

Francisco Castro

Olá!

Trata-se de um grande intelectual que em todas as reflexões estão embutidas preocupações com o ser humano em todos os seus aspectos. É um intelectual do mais alto nível e que merece todo o nosso respeito.

Abraços

Francisco Castro

Noélio A. de Mello

Mestre Leonardo,

Seja bem-vindo. Sua chegada, além de uma honra para todos que seguem os sonhos de Sonia Regina. O senhor, com certeza, será acolhido em nossos corações como acolhemos em nossas mãos os perfumes de todas as rosas.
Desapegar-se das coisas terrenas é uma das mais ingratas missões do ser humano. Como nascer e morrer são realidades tão antigas que contam a idade do próprio tempo, é natural que todo nós vivamos nessa ãnsia de tentar descobrir os mistérios da vida e morte...e delas sentir medo.
Desapagar-se, atravessando a fina cortina que nos separa do invísivel, seria fácil se nossa fé, em todas as coisas, fosse um caminho fértil que nos desse a coragem sem limites para nos tornar Santos e humanos em perfeita comunhão.
Seu fantátisco Boneco de Sal entendeu a vida dessa maneira e se descobrindo, desapegou-se de tudo e desnudou sua alma, que você moldou para ele, diante das coisas divinas.
Um dia, quem sabe, seremos humanos como seu Boneco de Sal.
Maravilhoso, mestre.
Abraços fraternos
Noélio A. de Mello

Betusko

Brilhante crônica que nos convida à reflexão sobre um tema tão caro e urgente nos dias atuais:o desapego. Tema este que traz incluído a idéia da despedida da vida. Perder e ganhar, troca justa e inevitável.

Abraços

PATRICIA ROCHA DE AMORIM

Porque nascemos brutos com a árdua tarefa de nos lapidarmos.
abçs
Patricia Amorim

Editorial

Leitores do prof. Boff:

No sábado dia 8 - antes da remessa que nos faz de seu artigo - vamos enviar para ele seus comentários.

Unknown

Preciso urgente saber a fonte desta parábola.
Já pesquisei na internet algumas vezes e nunca encontro a fonte primeira.
Está em algum livro do prof. leonardo boff?
Aguardo o retorno.