A solidão torna-se insuportável quando sobe pelo corpo, navega pelo sangue e se arruína em bebedeira de luto dentro do coração esfomeado, como um castigo, um amargo soneto à morte antecipada; a solidão é uma carteirista da felicidade alheia, uma cadela nocturna, uma máscara de morte. Convive com horas clandestinas, estrelas apagadas, chagas infernais. No desassossego da idade talvez fosse melhor partilhá-la com alguém a quem extorquir um pouco de ternura; talvez essa grave coima que é a solidão ficasse atenuada, se repartida com um qualquer, um companheiro de circunstância, uma mulher vendida aos ventos que se conhece na íntima noite numa rua vazia e difícil de encontrar. Há horas que são momentos de dor, jogos de relâmpagos e de cataclismos. Mas secam, porque a solidão também enlaça devagar, como uma deusa sonâmbula que desliza. Bruscamente tudo acontece: primeiro, a curiosidade, descoberta casta; depois, o desejo, desassossego na respiração; a seguir, a paixão que se desfaz na lua; e, por fim, entra em cena madame solidão, iluminada pelas luzes longas e em frente de uma cortina escura. Desiste-se, adoece-se, envelhece-se, geme-se como um animal estrangulado, morre-se mirrado até ao osso, sem conchego e sem deus. Sente-se as mãos molhadas do choro e já não se espera outra mulher que console, nem um amigo de braço estendido que amacie a alma esburacada e até a pele passa a ser virtual. Cada discurso é estéril, mesmo o mais sapiente. Quanto egoísmo, quanto propósito supérfluo, quantos acrobatas a ensaiar o mortal, ninguém sai sem cadastro! Quando nos desiludem já pouco se espera do ser humano, nada é mais que profundo vazio, frágil instante, sala de tortura, carne ardida, punhal num peito, voo de pássaro ferido, animal que uiva, como se o mundo fosse um castelo-fantasma e perdesse todo o sentido, ficando tão só a escuta do grande sismo silêncio que, a pouco e pouco, começa a ressoar na alma em desagregação, como nas margens do tempo.
Ainda assim, pálido e frio, especialista em fracassos, insiste entrar sem bússola no labirinto das emoções, de recomeçar e deixar o seu cartão de visita, dados pessoais e telemóvel: solitário, 40 anos, escondido nuns óculos escuros, talvez poeta, talvez humano, procura companheiro(a)…
Luís Galego
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8 comentários
Que conto comovente, Galego! Você expressa com maestria esse sentimento atroz que corrói até os ossos em certos momentos, e que coincidentemente também estou reproduzindo na série Contos de Solidão, nesta semana trazendo o "Sem olhar para trás"... Parabéns!
tu és um autor mesmo fantástico! :)
Parabéns, amigo.
Abraços
Jorge Vicente
Luís,
Uma grande obra: anatomia precisa do sentimento!
"...ninguém sai sem cadastro!"
Grande Abraço, Jorge X
Luís,
é sempre um prazer ler-te.
Gostei muito do conto, tal como outros escritos teus, cheios de sentimento.
Parabéns
Jasmimdomeuquintal...
Solidão, Galego, é tudo isso e muito mais! Solidão é a Morte em pequenas doses!
Luís, essa sua capacidade de descodificar o ser humano é deveras espectacular. Por outro lado, as suas palavras são de tal modo belas e profundas que tocam o coração de qualquer pessoa. Adoro lê-lo. As coisas que o Luís escreve são tão intensas que, para mim, torna-se dificil estabelecer uma dicotomia entre o real e o ficcional. Sinto-me sempre personagem da sua escrita. Obrigada e um abraço de parabéns.CM
Caro Luis. Apesar do atraso deste meu comentário, queria felicitar-te por este belo texto radiográfico sobre um sentimento difícil de definir e que tu consegues elevar a um patamar poético e filosófico que penetra no leitor com uma agudeza extrema. A solidão pode ser assim a partilha da alma e o encontro com a esperança que não quer acabar.
Grande abraço.
Luís,
fico sempre encantada com atua forma de escrever: sempre tão profunda.
Sobre a solidão, não comento...
Bjocas
Jasmim do meu quintal
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