quarta-feira, 23 de junho de 2010

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E foi assim... - Paola Rhoden

O dia estava lindo! Amanheceu com aquela luminosidade peculiar que se dá após uma noite de chuva fina. O jardim sorria, os pássaros faziam sua festa matinal no alto da paineira que parecia um buquê gigante. E era sábado. Dia em que ela e o marido nesses últimos vinte anos, tempo de duração de seu casamento até agora, saíam para fazer alguma coisa interessante. Às vezes nem tão interessante assim, mas a simples presença companheira de ambos a vasculhar prateleiras de supermercados, ou a caminhada pelas alamedas do parque, faziam desses momentos, minutos especiais.

Ela olhava pela janela quando o marido falou:

- Vamos sair?

Ela já pronta há muito, sorriu e o seguiu para o corredor. Desceram pelo elevador em silêncio, um tanto insólito, porque sempre saiam tagarelando sobre coisas da semana ou da filha adolescente. Mas o dia estava uma beleza e ela não se deu por conta do silêncio. Entraram no carro. Ele colocou uma música das que ela mais gostava, e enquanto o carro deslizava para fora da garagem cantarolava os versos que o cantor em sua voz maravilhosa deixava no ar.

Alguns meses antes haviam adquirido um imóvel nas proximidades. Investimento. Dissera ele. Ela concordou. Ficaram sem nenhum centavo sobrando. Mas ela lhe deu razão. Era melhor investir.

Enquanto cantarolava perguntou aonde iam.

- Vamos dar uma olhada na kit, ver como ficou.

- Ficou linda! – disse ela – afinal passara dois meses em função da decoração.

O carro parou em frente ao prédio da kit e eles desceram. Ela sorrindo feliz por poder mostrar o resultado de seu árduo trabalho de decoradora improvisada.

- Ficou ótima mesmo – falou ele.

- Que bom que gostou. Caprichei em tudo.

Ela continuou borboleteando sorrindo sempre. Ele sério abriu uma das grandes janelas e ficou olhando a rua lá embaixo. Ela olhava-se ao espelho do pequeno banheiro fazendo trejeitos de desfile. Estava feliz.

Ela aproximou-se dele na janela e perguntou:

- Não gostou? Está tão sério.

Ela conhecia todos os olhares do marido, todos os seus gestos pensados ou impensados. Mas aquele olhar, era a primeira vez que via. Ficou preocupada. Alguma coisa estava acontecendo. Ele virou-se para ela tomou-lhe as mãos e disse:

- Querida! Amo demais você por ser uma mulher especial, diferente, alegre, companheira. Durante vinte anos fomos um para o outro a complementação da vida. Você foi meu refúgio e a pessoa mais importante de minha vida. Mas, vou sair de casa. Não porque não a ame mais. Mas porque preciso viver uma vida livre, sem família, quero aproveitar um pouco as oportunidades que aparecem com outras mulheres. Virei morar aqui. Estarei sempre por perto de você e da filha.

O impacto dessas palavras não foi de imediato assimilado por ela. Que ele estava falando mesmo? Seus olhos estavam presos no olhar frio e distante do marido.

- Não entendi. Você vai morar aqui? Na kit?

- É! Vou.

- Mas e nós?

- Vocês ficam lá em casa. As duas. Afinal vivemos juntos vinte anos. A filha já está grande. Eu não as deixarei sem amparo. Acho que esse tempo já foi suficiente não foi?

Ele falava devagar, pausando as palavras, sem tirar os olhos do olhar dela. Suas mãos foram se soltando e caíram ao longo do corpo que tremia levemente.

Ela se casou porque achou que seria o amor de sua vida para sempre. E agora vem ele e diz: ‘não a quero mais’. Lentamente saiu do aposento e enquanto seguia pelo longo corredor, sua dor começou a machucar a alma. Doía doidamente. Pensava: ‘Estou dormindo e isso é um terrível pesadelo. Vou acordar. Afinal, nunca brigamos. Sequer tivemos uma pequena discussão em vinte anos de casados. Sempre resolvemos os impasses que surgiram pela vida afora com sabedoria. Nossa filha nunca ouviu sequer uma voz alterada de nenhum de nós. Vou acordar com certeza’. E em frente ao elevador fechou os olhos apertando as pálpebras com força. ‘Vou acordar’. O elevador chegou, abriu os olhos, estava acordada. E era a realidade. Não um pesadelo.

Desceu! Errou o caminho. Em vez de ir para a saída foi para o lado errado do corredor. Sua cabeça doía. Achou a saída. O porteiro lhe acenou com a cabeça, respondeu mecanicamente. Saiu para a rua sem ver nada e seguiu pelas calçadas limpas pela chuva da noite, sem rumo. Aonde iria? Não sabia. O coração que até há pouco sorria com a luz da manhã, agora não via mais nada. Tudo estava escuro e sem brilho. Nossa, que dor!

Os dias passaram lentos desde que ele se fora. As coisas dele foram levadas aos poucos. Cada dia passava e levava algo que estava precisando. Parecia que ele não queria deixar um vácuo muito grande de uma só vez. Dois meses depois a parte dele do armário estava vazia. Nada mais havia lá. As visitas também rarearam e aos poucos se resumiram em uma passada rápida em algum final de semana qualquer, sem aviso. Nunca mais os jantares, almoços, festas alegres e barulhentas. Nada mais de passeios no parque, risadas alegres pelo jardim florido que ela ajudava a cuidar. A filha revoltada pela separação passou a viver praticamente com os amigos, vindo em casa somente para trocar de roupa e dormir já tarde da noite. Até os estudos negligenciou. Mas passou logo, porque o pai não a abandonou. Chegava à portaria do prédio e a chamava para saírem duas ou três vezes por semana. Quem ele abandonou fora a ela somente. A filha não. Ainda bem.

Por muito tempo ela ficou ao lado do telefone, esperando para ouvir do outro lado ele dizer que ia voltar e que estava arrependido. Mas ele não se arrependeu. O tempo passou e com ele a dor também se foi. Ficou somente, lá no fundo da alma, aquela sensação de desconsolo que a mágoa fixa e não deixa esquecer.

E no coração alguma coisa estava faltando. Algo que nada pode substituir: vinte anos de dedicação e amor.

Não tinha mais porque sorrir.

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