quinta-feira, 24 de junho de 2010

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Luís Galego - chicote de raiva...

Uma mulher, a minha mãe, morreu pelo crime de te ter amado, contagiada pelo abismo que foste tu, ser maléfico como um pássaro sem bico. Um homem, o meu pai, morreu de amor por a ter perdido, sem ter apreciado um último abraço e o sabor de um beijo. Destruíste um homem e uma mulher devido ao teu egoísmo, ao teu egocentrismo que deu mais valor à sórdida auto-estima machista do que à cumplicidade deles. Foste um bicho feroz e carnívoro que conspurcou o lençol da neve com os sinais do seu vómito. Se pensas que o vidro fosco do tempo os eliminou estás enganado. Estou aqui. Sou ambos, sou Inês Bessa-Luís e António Franco. Não conseguiste nada. Não estão mortos, não desapareceram, não estão esquecidos. Continuam a viver em mim, são duas estrelas refugiadas dentro do meu espírito.

Não sabes quem eu sou. Não vês na juíza que te julga a menina que tinha a idade das amoras, seu selvagem sem alma por dentro? À noite, quando fechas os olhos, vês a minha mãe cansada de esperar, gemendo como um animal estrangulado, depois de ter fugido de casa, iludida pelos teus dotes de don juan e pelas teias eróticas de trazer por casa? Sabes que a ausência de um regaço de mãe que nutre e embala só é comparável a uma sala de tortura, a um recinto escuro, de infância? Sabes que a privação de um pai na meninice é um armário poderoso com tecidos sanguinários guardados? Sentir a falta dos dois é o mesmo que estar soterrada numa casa fria cheia de fantasmas perdidos nas sombras. A vida passou a ser só um inverno punitivo, névoa e abandono, um navio encalhado nos ramos, uma ilha de silêncio. Aterrorizei-me tempos a fio enquanto adormecia devagar. Deprimida olhava um rosto de dor frente ao espelho, onde caíam lágrimas, gota a gota, do coração esponjoso, cru, agitado, que não enxugava, como só no absoluto da pré-adolescência se conhece. Medos que nem mesmo o tempo ou o riso conseguem sarar.

Não me chames minha senhora, sou magistrada judicial, faço julgamentos com sangue-frio e alma cheia de musgo e de rasgões. É a cólera que me leva aos precipícios da memória de uma noite que desfolhou relâmpagos sobre mim. Tu és o nó de sangue que me sufoca. És uma faca cravada na minha secreta existência. A minha mãe morreu por tua causa, mulher com ternura a jorrar pelos poros, cujas mãos estremeciam por algo novo e já tocada na carne profunda sentiu-se uma nódoa vendida aos ventos da noite, optando pela morte por não ter coragem de regressar aos braços meigos do marido. O meu pai, bom homem, não resistiu ao desaparecimento da mulher, ele um subscritor do lirismo dos apaixonados estava convencido que morariam para sempre um no outro num casarão sem número. Eu sou Inês Bessa-Luís e António Franco e tu és insignificância, menos que nada. Enterro o meu terror e os meus demónios privados esmagando-te com o pé, hoje e aqui, nesta sala de audiências, independentemente do crime de que és acusado.

Luís Galego






Imagem: enviada pelo autor [* imagem retirada da Internet]







1 Comentário

Anônimo

...........como eu entendo...........
mas já perdoei, não ficou raiva, nem chicote.
Espero k me tenham perdoado tb.
Priscila