(Para Mara Regina Barbosa de Oliveira e Rossano Viero Cavalari, gente viva da Cruz Alta [1] de hoje.)
Então, naqueles dias, eu estava lá! Lera, antes, sobre a gênese daquela Cruz Alta que vivera dentro do meu peito desde a infância, e lera sobre o longuíssimo desfile de degolados com sofisticação e maldade da sua Revolução Federalista, e lera O tempo e o Vento, daquele, que no meu coração de criança dada a sonhar, fora o primeiro a abrir a porteira de todas as possibilidades! Não precisou muito tempo de contato com aquele lugar, aquela gente, para entender que ali era Santa Fé... E QUE ALI ERA ANTARES! De uma certa forma, o meu coração estava preparado para descobrir que estava chegando em Santa Fé, quando tomei o ônibus para Cruz Alta – mas deparar-me, ao mesmo tempo, com Antares, foi uma coisa magnífica! E Antares me espiou de fora do táxi, e como que me piscou um olho cúmplice quando, antes das oito horas da manhã, vindo da rodoviária para o hotel do centro, vislumbrei a vetusta praça de grandes árvores, linda praça como poucas cidades têm – e lá nela, como que de uma forma encantada, o coreto de Antares, daquela cidade mágica onde os mortos reviveram porque os coveiros, em greve, não quiseram enterrá-los, e se juntaram todos ali naquele coreto, mortos-vivos sem mais nenhuma obrigação para com os mortos ou para com os vivos, a passar num pente fino a população local e a todas as justiças e injustiças que por ali aconteciam! Eu mal podia crer que chegara, também, a Antares, a mágica cidade do Incidente! Foi de vislumbre, de passagem rápida que vi o coreto e entendi tudo, e meu coração deu o maior pulo, porque sempre admirei muito aquela forma que Érico Veríssimo arranjou de fazer crítica política e social em plena ditadura, de botar tudo o que pensava e achava na boca dos mortos de Antares! A lembrança me trouxe o dia em que comecei a ler aquele livro, num ônibus entre Florianópolis e Blumenau, acabado de ganhar de presente do meu então editor, seu Odilon Lunardelli, que também já partiu faz tanto tempo!
Chegara cansada naquela cidade que era Cruz Alta, que era Santa Fé e que era Antares, e fazia um grande frio – era mister descansar um pouco, e não me fiz de rogada quando vi a cama com sua grossa pilha de cobertores de quente lã. Penso que só me acordei umas duas ou três horas depois, e então saí do hotel para conquistar Cruz Alta, para entender um pouco mais ainda os campos de Érico Veríssimo!
A História, ali, era tão forte quanto o frio – mas para mim, que passara décadas imaginando como seria, o mundo da imaginação era ainda mais forte que a História e o frio, e tão agasalhada quanto podia, saí farejando aquele mundo encantado como quando a gente fareja cores e arco-íris! Do hotel se saía para um calçadão, e não foram necessários muitos passos para de novo eu estar... frente a frente com o coreto de Antares!
Havia diversos pontos naquela cidade que me atraíam e que ainda viriam a me atrair, e havia pessoas que eu queria conhecer, e havia a vastidão dos campos mais longe, ao redor, e a lembrança dos tratados de 1750 e 1777 (neste momento me pergunto: qual foi o do uti possidetis? Minhas professoras primárias me ensinaram tão bem – onde foi que esqueci a informação correta?), e tanta coisa, tanta coisa para ver, saber, viver e aprender ali, e os dias eram tão poucos – e eu ia e vinha, e descobria sempre mais coisas sobre aquela cidade que tanto já conhecia através dos livros – e não vou dizer que aquela era a coisa mais forte ali – mas como era forte!
Naquele tão pouco tempo, inúmeras vezes eu andei por ali, encurtando o passo, me demorando, espiando, fotografando – penso que espiava aquele coreto como quando, na adolescência, compramos uma revista pornográfica e a escondemos dentro do casaco para que ninguém a veja, mas tendo a sensação de que todos estão a nos olhar por causa daquilo – o fascínio que aquele coreto exercia sobre mim era uma coisa espantosa! Mirei-o, remirei-o e fotografei-o de tantos ângulos e tantas vezes, que decerto não deixei escapar de ver e sentir nada – mas em nenhum momento tive coragem de nele subir. Na minha imaginação, os mortos que ali tinham “vivido” seu protesto que exigia o direito de serem enterrados, e que ali, aos poucos, foram se decompondo e ficando com os olhos cheios de moscas, decerto que tinham deixado seus resquícios, seus miasmas, seus eflúvios, seus líquidos naquele chão de mármore e naquele ambiente tão bonito! Poderia vir o próprio Érico Veríssimo para me dizer que aquilo não era verdade, que era apenas coisa de livro, que eu não iria acreditar! De jeito nenhum tive coragem de subir naquele coreto uma vezinha que fosse!
E pensar que tem gente em Cruz Alta que não liga muito, não, para toda aquela magia que anda espalhada por lá tudo!
Blumenau, 25 de Agosto de 2007.
Urda Alice Klueger
[1] Cruz Alta: cidade na Região das Missões, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, onde nasceu o grande escritor Érico Veríssimo.
Então, naqueles dias, eu estava lá! Lera, antes, sobre a gênese daquela Cruz Alta que vivera dentro do meu peito desde a infância, e lera sobre o longuíssimo desfile de degolados com sofisticação e maldade da sua Revolução Federalista, e lera O tempo e o Vento, daquele, que no meu coração de criança dada a sonhar, fora o primeiro a abrir a porteira de todas as possibilidades! Não precisou muito tempo de contato com aquele lugar, aquela gente, para entender que ali era Santa Fé... E QUE ALI ERA ANTARES! De uma certa forma, o meu coração estava preparado para descobrir que estava chegando em Santa Fé, quando tomei o ônibus para Cruz Alta – mas deparar-me, ao mesmo tempo, com Antares, foi uma coisa magnífica! E Antares me espiou de fora do táxi, e como que me piscou um olho cúmplice quando, antes das oito horas da manhã, vindo da rodoviária para o hotel do centro, vislumbrei a vetusta praça de grandes árvores, linda praça como poucas cidades têm – e lá nela, como que de uma forma encantada, o coreto de Antares, daquela cidade mágica onde os mortos reviveram porque os coveiros, em greve, não quiseram enterrá-los, e se juntaram todos ali naquele coreto, mortos-vivos sem mais nenhuma obrigação para com os mortos ou para com os vivos, a passar num pente fino a população local e a todas as justiças e injustiças que por ali aconteciam! Eu mal podia crer que chegara, também, a Antares, a mágica cidade do Incidente! Foi de vislumbre, de passagem rápida que vi o coreto e entendi tudo, e meu coração deu o maior pulo, porque sempre admirei muito aquela forma que Érico Veríssimo arranjou de fazer crítica política e social em plena ditadura, de botar tudo o que pensava e achava na boca dos mortos de Antares! A lembrança me trouxe o dia em que comecei a ler aquele livro, num ônibus entre Florianópolis e Blumenau, acabado de ganhar de presente do meu então editor, seu Odilon Lunardelli, que também já partiu faz tanto tempo!
Chegara cansada naquela cidade que era Cruz Alta, que era Santa Fé e que era Antares, e fazia um grande frio – era mister descansar um pouco, e não me fiz de rogada quando vi a cama com sua grossa pilha de cobertores de quente lã. Penso que só me acordei umas duas ou três horas depois, e então saí do hotel para conquistar Cruz Alta, para entender um pouco mais ainda os campos de Érico Veríssimo!
A História, ali, era tão forte quanto o frio – mas para mim, que passara décadas imaginando como seria, o mundo da imaginação era ainda mais forte que a História e o frio, e tão agasalhada quanto podia, saí farejando aquele mundo encantado como quando a gente fareja cores e arco-íris! Do hotel se saía para um calçadão, e não foram necessários muitos passos para de novo eu estar... frente a frente com o coreto de Antares!
Havia diversos pontos naquela cidade que me atraíam e que ainda viriam a me atrair, e havia pessoas que eu queria conhecer, e havia a vastidão dos campos mais longe, ao redor, e a lembrança dos tratados de 1750 e 1777 (neste momento me pergunto: qual foi o do uti possidetis? Minhas professoras primárias me ensinaram tão bem – onde foi que esqueci a informação correta?), e tanta coisa, tanta coisa para ver, saber, viver e aprender ali, e os dias eram tão poucos – e eu ia e vinha, e descobria sempre mais coisas sobre aquela cidade que tanto já conhecia através dos livros – e não vou dizer que aquela era a coisa mais forte ali – mas como era forte!
Naquele tão pouco tempo, inúmeras vezes eu andei por ali, encurtando o passo, me demorando, espiando, fotografando – penso que espiava aquele coreto como quando, na adolescência, compramos uma revista pornográfica e a escondemos dentro do casaco para que ninguém a veja, mas tendo a sensação de que todos estão a nos olhar por causa daquilo – o fascínio que aquele coreto exercia sobre mim era uma coisa espantosa! Mirei-o, remirei-o e fotografei-o de tantos ângulos e tantas vezes, que decerto não deixei escapar de ver e sentir nada – mas em nenhum momento tive coragem de nele subir. Na minha imaginação, os mortos que ali tinham “vivido” seu protesto que exigia o direito de serem enterrados, e que ali, aos poucos, foram se decompondo e ficando com os olhos cheios de moscas, decerto que tinham deixado seus resquícios, seus miasmas, seus eflúvios, seus líquidos naquele chão de mármore e naquele ambiente tão bonito! Poderia vir o próprio Érico Veríssimo para me dizer que aquilo não era verdade, que era apenas coisa de livro, que eu não iria acreditar! De jeito nenhum tive coragem de subir naquele coreto uma vezinha que fosse!
E pensar que tem gente em Cruz Alta que não liga muito, não, para toda aquela magia que anda espalhada por lá tudo!
Blumenau, 25 de Agosto de 2007.
Urda Alice Klueger
[1] Cruz Alta: cidade na Região das Missões, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, onde nasceu o grande escritor Érico Veríssimo.
Seja o primeiro a comentar:
Postar um comentário