Na manhã seguinte Clarissa acordou com um amargo na boca. Olhou para o lado e estranhamente estava deitada no assoalho da sala, sem nenhuma peça de roupa. A seu lado uma enorme poça de sangue manchava o granito do piso. Granito novinho que ela e Maurício haviam escolhido a dedo, e que só há uma semana estava colocado. Eles decidiram trocar o piso porque o outro era muito feio. Essa poça de sangue iria manchar o piso novo. ‘Sangue? De onde todo esse sangue?’ Então virou para o outro lado e viu vômito por todo canto. ‘Credo! O que seria isso?’ Levantou-se e chamou:
- Maurício! Onde você está? Correu para a cozinha e estacou assustada. Próximo a pia Maurício estava caído sobre outra poça de sangue. No peito uma faca, sua faca de cozinha, aquela grande que ela costumava usar para destrinchar frango. A faca estava enfiada bem funda na direção onde era o coração do marido. Então lembrou! Lembrou de tudo! A chegada de Maurício de madrugada, a festa dos professores, o retorno, a conversa entrecortada da explicação de Maurício sobre o namoro, os motivos que o levaram a fazer aquilo. Engraçado. Ela lembrava que ele dissera o motivo, cansaço de ter uma única mulher, embora ela fosse linda e ele a amasse, ele quis experimentar outras, não foi só uma, foram várias até encontrar essa que já fazia um ano que namorava. Também era muito bonita e ele estava gostando de ter duas mulheres lindas. E outras coisas que aos poucos ela foi lembrando. E a dor no peito? E a dor de cabeça? Tudo foi se formando claramente.
Quando ela entrou na cozinha Maurício a seguiu. Ela pegou a faca para enfiar em seu próprio peito para tirar a estaca que estava lá torturando. Maurício tentou tirar de sua mão, mas ela foi firme. Uma força que não era dela, que vinha da dor que estava em seu peito. Maurício fazia mais força ainda e empurrou a faca não em seu coração, mas no dele. Maurício foi caindo devagar e seu sangue jorrava da ferida. Aí ela não viu mais nada. Dormiu. Não viu mais nada! Só hoje de manhã.
Maurício estava de short e sem camisa, como sempre ficava quando estava em casa assistindo TV. ‘O que fazer agora?’ Sentou no chão ali perto do corpo do marido morto. Precisava pensar. Era sábado. Não havia aula. Então rapidamente levantou-se, foi ao banheiro tomou um banho para tirar todo aquele sangue. Demorou um pouco para limpar as crostas que secaram durante a noite. Saiu do banho e vestiu-se com calma. Começou por limpar a sala, era fácil, o granito novo soltava a sujeira facilmente. O sangue também. Limpou tudo. O vômito devia ser dela, não lembrava. Depois da sala foi para a cozinha. O corpo atrapalhava um pouco porque tinha que virar daqui para lá, de lá para cá. Se não fosse assim não limparia direito. A ferida no peito de Maurício não sangrava mais. Ainda bem. Evitava ter que limpar onde já havia limpado. Terminando o serviço de faxina pensou que agora precisava levar o marido para algum lugar. Mas para onde? Enquanto pensava pegou um grande saco de lixo preto e tentou fazer o corpo caber. Aperta aqui e ali, e coube. Mas o saco era fraco. Precisava que ficasse mais forte. Pegou mais dois sacos e reforçou colocando um dentro do outro. Já estava suada com o esforço. Maurício era grande e pesado. Finalmente terminou.
- Puxa vida! Preciso tomar outro banho. Estou imunda.
Tomou mais um banho caprichado, vestiu uma roupa leve e pegou o carrinho de compras que ficava na área de serviço. Ainda bem que era grande, colocou o saco dentro com um esforço sobre-humano, afinal não era lutadora nem praticava halterofilismo, mas conseguiu. Ufa! Saiu pela porta de serviço com o carrinho e desceu até a garagem. Não havia ninguém. Era muito cedo ainda para que alguém estivesse saindo. Abriu o porta-malas do carro e com muito esforço conseguiu colocar Maurício lá dentro. Sentou-se ao volante e pensou: ‘para onde irei agora?’ Ficou por vários minutos sentada ali sem saber para onde ir. Enquanto pensava, vinha a sua cabeça os fatos da noite anterior. A dor no peito e na cabeça estava voltando. Não podia ter dores agora. Maurício estava sufocando dentro daqueles sacos de lixo. Precisava lembrar logo para onde deveria levá-lo antes que ele sufocasse de vez. ‘Que besteira! Ele está morto! Ela o matara com a faca de cozinha! Onde ela pusera a faca? Depois veria isso. Ah! Lembrei! Vou levar Maurício para o mar. Lá jogarei o corpo. Será que jogo com saco ou sem saco? Lá decidirei!’
O carro saiu suavemente da garagem e Clarissa foi em direção ao mar. Precisava achar um local bem isolado onde ninguém pudesse vê-la. Havia uma praia atrás dos rochedos onde ninguém gostava de ir por ser reduto de drogados e outros marginais. Era um bom lugar. E como ainda era cedo, talvez não houvesse ninguém por lá. O caminho não era muito longo. Apenas alguns quilômetros pela estrada marginal.
Chegou aos rochedos e estacionou na areia que estava firme por estar molhada da ressaca. Desceu do carro. Olhou para os lados e viu um barco deixado ali por alguém. Aproximou-se devagar do barco e inspecionou por dentro. Era um barco comum desses usados por pessoas que fazem pequenos mergulhos, havia dois remos no fundo. Examinou e viu que era bem fácil colocá-lo na água. Voltou ao carro, abriu o porta-malas e tirou seu pacote estranho de dentro. Puxou o embrulho pela areia molhada até o barco deixando um rastro fundo pelo caminho, e com muito esforço conseguiu colocar dentro. Empurrou a embarcação até a água e entrou, acomodou-se, colocou os remos nos devidos suportes nas laterais do barco. Nossa, com tanto exercício seu coração batia forte e voltou a doer muito, parecia que a estaca ainda estava lá. A cabeça também doía e novamente o sangue parecia jorrar para o cérebro. Ficou alguns minutos parada, respirou fundo várias vezes e a dor amenizou. Conseguiu remar devagar e o pequeno barco seguiu dócil pela água que não era muito calma por ser próximo aos rochedos. Subia e descia. A manhã já ia ficando quente com o sol cada vez mais a pino. Remou muito, chegou bem longe da praia e parou de remar, o barco obediente ficou balançando nas ondas enquanto ela pensava. Jogaria com saco ou sem saco? A cabeça doía muito. Então decidiu tirar o corpo dos sacos e jogá-lo na água. Com o esforço da ação de empurrar Maurício pela borda o barco ameaçava virar, mas precisava jogar, então continuou até conseguir que ele deslizasse para a água, para a imensidão de azul esverdeado que agora tão longe da praia estava calmo, espelhando a luz do sol em suas pequenas ondas com um brilho que doía em seus olhos nus.
‘E os sacos vazios? Que fazer deles?’ Embrulhou-os em um pequeno volume e deixou no fundo do barco. Precisava voltar. Olhou para a água muito límpida, o corpo de Maurício descia devagar para o fundo, ora parava, ora descia mais um pouco. Todo mundo falava que ali em alto mar, naquela região, havia tubarões. Sentiu um frio na espinha ao lembrar-se disso. As lágrimas começaram a escorrer de seus olhos, o seu Maurício, o amor de sua vida descia para as profundezas e fora ela, sem querer, mas fora ela que o matara por equívoco, era no peito dela que a faca deveria ter entrado, ele não devia ter segurado sua mão com tanta força. Chorou muito olhando as águas. Mas ele tinha outra! Outra mulher linda segundo ele. Quem seria? O choro estancou com o pensamento e as dores voltaram. Começou a remar de volta à praia. Mas onde ela estava? Para que lado era a praia? Olhou o céu e seguiu o vôo das gaivotas, elas sempre iam para os rochedos, seu lar era lá. Então tomou os remos e tocou para a praia seguindo o vôo das gaivotas.
Quando chegou ao apartamento e abriu a porta, um cheiro forte de sujeira azeda invadiu suas narinas. Então ela não limpara direito, precisava fazer nova faxina. Mas agora não, estava exausta! Deitou ali mesmo no sofá e dormiu.
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