domingo, 4 de julho de 2010

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FILOBÔNIO FILÓ - parte 06


- o lambe-lambe

Um, dois, dez gatos. Vinte. Trinta quarenta gatos. Um montão
deles, ocupando o jardim, as alamedas, os bancos da praça.
Tomando sol, os gatos. Na praça que já foi bela, que já vivera dias
de glória.
Filó gosta da praça, dos gatos da praça. Mas gosta mesmo, de
verdade, é do lambe-lambe. E da grande máquina fotográfica do
lambe-lambe, montada sobre um robusto tripé de madeira
torneada, envolta por um pano preto que lhe empresta ares de
mistério.
Dia após dia Filó vai à praça observar o lambe-lambe. O
homem, que não se percebe observado, ronca sob o sol, a meio
metro da máquina de mistérios. Filó passa horas na praça,
brincando com os gatos, espantando os gatos – e observando o
fotógrafo, que ronca, baba e sonha.
Um dia, de saco cheio dos gatos, Filó resolve se aproximar do
lambe-lambe. O homem o recebe com um sorriso sépia, amarelado
como nas fotos, e limpa, do canto da boca murcha, os restos do
ronco interrompido.
- Retratinho, patrão?
Filó agradece, diz que não, que não é fotogênico. Quer apenas
elogiar:
- Acho o senhor um exemplo de resistência. Ninguém mais usa
uma máquina como essa.
- Ninguém mesmo – concorda o lambe-lambe. – Nem eu.
Quando pinta um serviço eu vou mesmo é de Polaroide.

- o almoço

Quando sente aquela vontade irresistível de visitar o campo (e
quando o estômago ronca), Filó vai ao supermercado.
Lá dentro, empurrando o carrinho de compras, ele se depara,
emocionado, com os vestígios de um mundo já distante: a horta, a
granja, o aromático curral.
No comprido freezer do açougue ele reencontra o boi, o velho
e querido boi – em pedaços, é verdade, fatiado para consumo, mas
ainda assim um boi.
- Querido boi, seja bem-vindo! – diz ele colocando a bandeja
de bifes no carrinho.
No freezer das aves Filó reencontra a galinha, a velha e boa
companheira galinha – depenada e empacotada, sem cabeça, mas
ainda assim uma galinha.
- Companheira galinha, seja bem-vinda! – diz ele jogando o
pacote congelado no carrinho.
Num cantinho cor de terra, cheirando a chuva, Filó reencontra
com prazer as fresquinhas hortaliças – cortadas e lavadas e
ensacadas, mas ainda assim hortaliças.
- Fresquinhas hortaliças, sejam bem-vindas! – diz ele
acomodando os saquinhos no carrinho.
Horas mais tarde, já sentado à mesa com o guardanapo de
pano amarrado no pescoço, para Filó não existem mais o
companheiro boi, a fresquinha galinha e muito menos as queridas
hortaliças: existe apenas o almoço, o saboroso almoço, que é para
o que servem mesmo essas coisas do campo.

- a eorsu

A grande fila se agita diante da recém-criada Empresa de
Organização Social e Urbana, a já popular EORSU. A fila - nem um
pouco organizada, mas urbana, com certeza – serpenteia pela rua,
dobra nas esquinas à direita e à esquerda, ocupa calçadas inteiras,
segue em linha reta por três modestos quilômetros e termina bem
embaixo da janela de Filó, que pergunta:
- É fila pra quê?
Um dos enfileirados responde, sorridente:
- É fila pra fila!
Curioso, Filó torna a perguntar:
- Como é isso?
- É simples – responde o enfileirado. – A EORSU organiza esta
fila pra distribuir senhas pras outras filas. Entendeu?
- Não, não entendi – diz Filó. – Explica de novo.
- Explico sim. É o seguinte: esta filona aqui, grande, é pra
gente pegar as senhas pras outras filas da cidade, entendeu?, as
filas dos bancos, da condução, essas coisas. Pegando esta aqui, a
gente garante o lugar nas outras, entendeu?
- Mas não seria mais fácil ir direto às outras filas, mais rápido?
- Seria sim – diz o enfileirado -, mas aí a Empresa de
Organização não teria o que organizar, entendeu?
- Ah! – diz Filó -, entendi sim, perfeitamente. Mas posso fazer
uma última perguntinha?
- Faz aí – diz o enfileirado, ainda sorridente.
- O senhor entendeu mesmo, tem certeza?

- filosóficas V

- idade média/idade mídia

- o paraíso deserto

Depois de muito rodar por entre os prédios sem personalidade
do centro, Filó se depara com o antigo e imponente mosteiro.
- Caramba! – ele exclama. – Preciso ver isso de perto!
O de perto, nas palavras de Filó significa por dentro, e por
dentro lá está ele, conduzido pela melodia de um órgão que não se
vê mas que se sabe em toda parte. Tendo a música de Bach como
guia, Filó explora o interior do mosteiro: arcos românicos e
germânicos pra todo lado, toques bizantinos aqui e ali, mármores e
granitos e esculturas de evidente inspiração medieval.
- É o paraíso – diz ele, o queixo amparado pela mão.
É o paraíso, sim, mas um paraíso deserto, uma ilha de sonho
solidamente ancorada no caos. Nenhum monge, nenhum fiel,
nenhuma alma para admirar os ricos vitrais multicoloridos.
- E o órgão, quem toca?
A resposta Filó encontra logo adiante: sobre o altar-mor, todo
paramentado, o computador que tudo controla, das portas ao
órgão, e que agora, na ausência de Deus, é de onde emana toda a
fé.

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