quarta-feira, 21 de julho de 2010

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Osvaldo Pastorelli - veia poética


Ele entrou no consultório como um boi entra no matadouro, timidamente, a voz meio fraca cumprimentou o sisudo médico que, sem olhar para ele, fazia anotações numa caderneta.

— Bom dia, doutor.

— Bom dia, entre.

Ficou em pé, no meio da sala, sem saber o que fazer. Foi nesse instante que o médico levantou a cabeça, parecendo notar sua débil presença, parada feito estátua.

— Por favor, sente-se.

— Obrigado doutor.

— O que o traz aqui?

— Bem, doutor, ando com uns esquecimentos, de vez em quando me dá um branco, fico sem saber o que dizer ou escrever.

— Sei. E quando isso acontece?

— Acontece mais à tardinha, doutor, depois do expediente.

— E quando começou?

— Dizer assim, o momento certo, não sei não, mas deve ser de uns dois ou três meses pra cá.

— Sei. Tem algum vício?

— Não, doutor.

— Fuma?

— Não, doutor.

— Bebe?

— Só nas sextas-feiras, depois do expediente e socialmente, apesar de que, às vezes ultrapasso o limite, mas não a ponto de substituir a bebida pela água, deus me livre, doutor, ainda não cheguei a esse extremo, conheço um cara que troca a água pela cerveja, nunca vi tomar água, a minha prima só toma coca, não toma água, não, acho que não sou viciado em bebida, doutor.

— Sei. Vamos examinar a sua pressão. Ela é boa?

— Não sei não, doutor, nunca me preocupei com isso.

— Sei. Mas deveria. Tira a roupa e deite-se aqui.

— Tirar a roupa?

— Sei. Sim, tira.

Desajeitado, tirou tudo. Nunca tinha ficado nu na frente de outro homem, era a primeira vez.

— Sei. Deite-se de barriga para cima.

Ele ajeitou-se na cama.

— Sei. Fique normal como se estivesse na sua cama, na sua casa, não precisa ter medo.

— Sei.

— Tá gozando da minha cara?

— Sei... não, não, desculpe-me, doutor, foi sem querer.

— Sei. A batida do coração está normal. A pressão também.

...

— Sei. Deixe-me ver as pontas dos seus dedos.

Ele esticou o braço e abriu a mão.

— Sei. As duas, por favor.

Abriu a outra mão.

— Sei. Digita muito?

— Um pouco, doutor.

— Sei. Tem notado alguma coisa quando digita?

— Depois de certo tempo as pontas dos dedos começam a adormecer e sobe uma dor pelo braço.

— Sei. Já sei o que é.

— Sabe doutor?

— Sei. Sei sim.

— E o que é doutor?

— Sei. É a sua veia poética que não está funcionando bem.

— Sei, veia poética?

— Sei. Tá me gozando, é?

— Não sei... quer dizer, não, doutor.

— Sei. Você precisa de uma transfusão.

— De sangue?

— Sei. De letras.

— Letras, doutor?

— Sei. Pode vestir-se. Sim, de letras. Ou talvez, de palavras. Letras o senhor já tem bastante, e fraco como está, não conseguirá juntar muitas.

— Isso dói, doutor?

— Sei. Não dói, acho que não dói, nunca precisei desse tipo de transfusão.

— Sei, doutor.

— Sei. Tá me gozando de novo?

— Sei... não sei... quer dizer, não, doutor, claro que não.

— Sei. Vou passar também uma receita leve para o senhor.

— O que eu preciso fazer, doutor?

— Sei. Praticamente não terá que fazer nada. Vou receitar para o senhor: Tolstoi, Dostoievski (isso para começar); depois, Faulkner, Henry James (assim que terminar com os russos); em seguida, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos... e não esqueça os poetas, de preferência, todos, mas o melhor é Drummond, Gullar também, e os atuais, aí o senhor vai ter que procurar, pois é difícil achá-los, ficam escondidos, não aparecem nos rádios, nem nas tevês. Ah, não esqueça Hilda Hilst!

— E quando deverei ingerir tudo isso, doutor?

— Sei. Depois da transfusão de palavras. Com a transfusão, e seguindo rigorosamente a prescrição de leitura, você estará em forma novamente por mais uns 70 anos. Quantos anos o senhor tem?

— 57, doutor.

— Sei. Com isso o senhor viverá mais de 100 anos.

— E onde tenho que fazer a transfusão, doutor?

— Sei. Ah! o senhor tem também Veia Bailarina?

— Veia Bailarina?!

— Sei. Do Ignácio de Loyola Brandão.

— Não tenho não, doutor.

— Sei. Estava me esquecendo, Ignácio de Loyola Brandão é atual, não pode deixá-lo de lado, vou escrever aqui, ao pé da receita.

— Sei, doutor.

— Sei. Tá me gozando?!

— Não... claro que não, doutor.

— Sei. Então passe bem, e vê se cuida dessa sua veia poética.

— Sei... Oh! desculpe, doutor, e obrigado.

— Sei. Ao sair feche a porta.





17.12.04

pastorelli




Imagem: autor ignorado






2 comentários

Conceição Pazzola

Ótimo texto, Osvaldo. Parabéns.

Conceição

rosa pena

Adorável Osv.. beijos e beijos..rosa