São Paulo não tem cheiro de mar. Tem cheiro de tudo: de lago, de rio, de poça, de esgoto, de chuva, de chorume, mas de mar, não. Por alguma razão, que me fugiu sem deixar vestígios, eu sabia que, se não sentisse cheiro de mar, ia morrer. Meu corpo me confirmava isso; passou a tremer, a visão se atropelava escada abaixo, o coração ameaçava explodir de tanto precisar do tal cheiro. Desconfio que tudo tenha se iniciado com o sonho que tive essa noite.
Estava quente, abafado, me sentia nas ruas do Recife, de João Pessoa ou de Salvador, mas não
Acordei sobressaltado, com as mãos suadas e coração prensado no peito. Recebi uma mensagem de um anjo, de morte, do céu de São Paulo, porém apenas um pensamento habitava minha cabeça: preciso voltar a dormir, pois ainda faltavam três minutos para as seis horas, e os juritis, canários e sabiás dormem bêbados no seio de Jurema.
Depois desse sonho, adquiri o hábito de caminhar pela rua aproximando meu nariz dos ombros nus, dos cabelos, das mãos, em busca do que eu precisava para não morrer. Percebi que
Um pouco decepcionado com a falta de mar nas pessoas, caminhava. Caminhava sem destino, mesmo ouvindo distante, no alto da Catedral da Sé, o gemido do sino, que advertiu: restam doze horas para o fim do dia. Minha perna estava mole, igual aos meus braços e meus olhos, quase gelatinosos a esta altura. Vou derreter logo mais. Pensei em ligar para Moisés e pedir uma ajuda, afinal, de assuntos marítimos ele entende. E outra, a tarefa nem seria tão árdua assim; bastaria que me desse um arremedo de cheiro, uma reminiscência daquele odor que senti uma vez e, pelo que me lembro, me deixou mareado.
Moisés está ocupado. Todos estão ocupados para se lembrar do mar.
Sentei numa mesa, na rua, na Consolação, pensei em pedir uma cerveja. Cerveja combina com mar, no entanto cerveja, pelo que pude ver depois do terceiro copo, nada tem a ver com o mar; cerveja é praça, é esquina, é cadeira de plástico, é noite.
Perdia meu tempo e minha vida, que pingava num conta-gotas asfixiante no Centro de São Paulo. Descrente de minha salvação, tentei lembrar a parte final de um pai-nosso improvisado, para que preparassem as coisas para mim, para que soubessem que ao menos eu fiz o que pude, mas não deu.
Eshtá tudo beim? Senti uma mão tocando meu braço grudado na mesa. Era uma voz diferente, não era daqui. Seria do céu? Um anjo in persona para me levar? Nunca imaginei que anjos tivessem sotaque. Na ponta dos seus dedos senti um ar gelado, toque de onda se aproximando. Quando ergui a cabeça, com a testa vermelha por estar horas abandonada no braço, testa vermelha de desistente, vi seus olhos castanhos, resplandecendo o azul que eu buscava. O mar!
Aos poucos, entre um pedido de informação, de onde fica o Mashp, prum deixa que eu te mostro, e por favor não me deixe morrer, Mariana me salvou, me levou pra tua Vila e lá, nos becos do teu pescoço, senti o cheiro de mar, e me avivei, aos poucos, bem aos poucos, para aproveitar cada gota do suor que vinha da tua profundidade até minha língua. Assim, lentamente fui sendo tragado, onda a onda, até que me engoliu, pelos poros, pela boca. Não lutei, não tentei nadar de volta para tua margem e, submerso em teu corpo me rendi, satisfeito e embevecido, erguendo a bandeira dos afogados.
Imagem: parvin dabas
1 Comentário
Ótimo!!!! É o que posso dizer deste conto! Adorei!!!! Já li alguns outros deste estreante autor e digo que muito me agrada a leitura de seus textos! Parabéns!!!!
MB
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