quarta-feira, 7 de julho de 2010

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Ricardo Novais - A MURALHA

MURO DE PEDRAS: Conto dedicado ao repertório da sociedade brasileira.




Meus dois filhos passam bem. Pedem-me, assim como minha refinada esposa, os préstimos de pai de família. Sou velho. Tenho formidável vida financeira e gozo de boa saúde. Penso que sou vencedor. Venci nesta estrada. Estrada de pedra pura. Esforcei-me bufando, empacando, cambaleando, fraquejando nos primeiros dias. Foi preciso cutucar e empurrar a mim mesmo, puxar-me e arrastar-me, amparar-me, lutando contra o vento e enfrentando tempestades, próximo a penhascos. Depois de tudo, atravessei a fronteira do sucesso e construí lá uma grande muralha que me protege do fracasso alheio.



Neste percurso de agruras, antes de todo sucesso conquistado, conheci também Angelina. Moça inquieta, perturbadora e fascinante. Amiga de minha juventude... Relembrar Angelina é relembrar sonhos de além fronteira, aqueles que eu deixei pelo caminho.



Numa praia ordinária, olhando a imensidão daquelas águas e desviando as mãos nas mãos de minha amiga, sentia-me o homem mais feliz de todos os mares. Todos os meus músculos disseram que eu era um bem-aventurado, os meus neurônios concordaram com a ideia. Vir-me-ei à Angelina, não a encarei totalmente, meus olhos não obedeciam ao coração. Ela percebia, mas também tinha lá seus problemas sob o peito. Ora, leitor experimentado, cada um dá a aparência que melhor lhe convier ao nervo cardíaco.



Angelina e eu mal controlávamos as mãos, quiçá o coração. Imagine, então, se haveria articulação para gestos que não fossem rudes ou grosseiros... De modo que encostamos a testa sobre o nariz, o vento trazia o gosto do mar, a areia encobria os pés até à altura dos tornozelos e...



Enfático foi o efeito do beijo. Nunca o esqueci, relembrando deste beijo em todos os momentos e fases de minha vida. Algumas vezes disse dele coisas feias e árduas, noutras apenas gostaria de revivê-lo. Nunca pude, nem poderei ter tantas coisas... Angelina casou-se algum tempo depois. Hoje ela tem também lá seus dois frutos e, creio, construiu, ou construíram para ela, uma excelente muralha; imaginas, a dona leitora que sabe do que falo, que esta muralha é bem diferente da minha, não é mesmo? Se imaginaste isto, querida, imaginaste errado. Angelina teve a mesma vida de sucesso, a mesma vida boa e de saúde. Um pouco de tudo e um tudo de nada, uma espécie de dia que vem à noite, numas linhas onde se escreve o que a memória reclama e o que a cabeça insiste em debochar do sentimento. Uma vida maravilhosa onde se pode ter todas as coisas que os homens criam e fabricam; tudo, menos aquele beijo vertiginosamente desajeitado e precoce.



A vida é mesmo inesperada, leva o pensamento passado como quem empregou toda esperança num só caminho e deu de cara com um maldito muro... Mas uma muralha tão bonita!





Por Ricardo Novais


Imagem: Sergio Occhiuzzo

3 comentários

João de Paula

Texto muito bonito, emocionante mesmo. Chamou minha atenção a forma com que o autor escreve íntimo do leitor, como se conversasse com ele em confissão.
Está de parabéns por escrever tão bem!

Um forte abraço!
João de Paula

Márcia Luz

Amo esse texto. Identificação!... rs

Ricardo Novais

João de Paula, fico muito feliz mesmo com estas tuas palavras; talvez seja eu escreva mesmo sempre em confissão...

Um abraço, meu caro.

***

Querida Márcia,

Sempre gentil, agradeço vir visitar-me aqui; embora nesta incrível casa em seja tão somente hóspede. Muito obrigado, querida!

Um beijo,

Ricardo.