sexta-feira, 17 de setembro de 2010

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AURIRUBRO - Milena Martins

Para Caio F.


Quando ele se aproximou de mim naquela manhã (a praça muito cheia, sol, as sombras das folhas do flamboyant ainda sem flores dançando sobre as páginas do meu livro), senti um reconhecimento. Inexplicável. E insistente. Eu nunca o tinha visto, afinal.
As crianças competiam pelos brinquedos, com uma crueldade brutal no deboche da vitória (o puro instinto, lembrei, pensando em alguma coisa de psicanálise que li quando ainda não tinha capacidade pra entender - hoje terei? Não acho. Não ligo.) e seus gritos competiam com os pássaros, que nunca têm plateia, pobres coitados. Era esse o som do silêncio, a minha paz, sem as brigas lá de casa, sem os barulhos do trânsito, sem o pagode gospel no último volume vindo do vizinho do terceiro andar, eu morava no nono (deve ser pra Jesus escutar o louvor lá do céu, eu sempre concluía).
Foi então que ele chegou. Sentou do meu lado, calmo, uma figura alta, magra, doce e muito, muito mesmo, imponente e agressiva na sua luz. Acho que era isso. Ou só era familiar, e o resto eu inventei.
Gosta?, ele perguntou, apontando pro meu livro.
Só então notei a presença do senhor grisalho ao meu lado no banco da praça. Não tive coragem ainda de olhar pra ele e, como de costume (um impulsivo e irritante costume), perguntei de volta:
Oi?, e, sem deixá-lo repetir (outro costume irritante), respondi que Sim, gosto muito. É meu livro preferido.
Ele ficou em silêncio, e me deu espaço (ou senti isso) pra olhar bem fundo nos seus olhos fundos, castanhos. Ele devia ter quase sessenta (acho) e tinha uma pinta negra no nariz (longo, agudo, imponente como tudo nele). Quase não tinha cabelos e a barba de três dias, mal-feita, me fazia lembrar do homem que Dana de Avalon esperava encontrar (que vai encostar seu joelho quente na minha coxa fria, lembrei do conto, mas nunca lembrava o resto, nunca lembrava nada mesmo, nem o aniversário da minha mãe). Um sotaque gaúcho, reconheci na voz dele, e não liguei, que o Rio de Janeiro é mesmo a metrópole dos renegados (sobretudo os que querem praia), daqueles que pensaram em fugir mas erraram o alvo.
Estava olhando pro chão o homem, quando olhei pra ele, e se voltou pra mim tão rápido que não pude desviar. Seu olhar me pegou muito fundo. Então não quis desviar, simplesmente me recusei, e permaneci naquele silêncio muito mágico, muito cheio de crianças más e pássaros maus naquela praça má do mundo mau onde vim cair, mas tudo tão bonito, ele tão bonito, eu (pra surpresa minha, pensei) tão bonita, o silêncio tão forte, tão bonito.
E do que mais você gosta?
(Que coisa a se perguntar. Gosto de tanta coisa, afinal!)
De flamboyants, de cantar Don't stop me now, de tomar porre de vinho (Oiro da Beira, de preferência), ouvir Dream Theater, desenhar olhos nos cadernos dos outros, ficar sentada no escuro de vez em quando, dormir no abraço do meu noivo Pedro Artur. E eu gosto dele (apontei o livro com os olhos), do que sinto quando estou com ele, mergulhada nesse universo. Gosto desses dragões, que nunca morarão mesmo comigo - nem com ele moraram. Ele dizia que queria que alguém o amasse por alguma coisa que ele escreveu. E eu nunca vou encontrá-lo e dizer a ele que eu o amo, eu o amo muito, tanto, infinitamente. Por cada palavra.
O homem tirou do bolso do casaco um maço de mentolados (embalagem tão antiga me pareceu), acendeu e tragou sete vezes, talvez pra dar sorte. Em silêncio, olhava as crianças, talvez se despedindo ou querendo que calassem a boca (quem sabe se não gostava delas, as crionças, who knows?). Depois voltou o olhar pra mim (vermelho estava o olhar), última vez, despedida. E disse meio baixo:
Você gosta de flores vermelhas. Eu gosto de girassóis. Amarelos. Talvez combinem. Espero que sim.
Levantou, então, e ficou tão alto que me senti pequena sentada ali, tendo que virar tanto o pescoço pra cima. Eu era mesmo muito pequena, anyway:
Obrigado.
Ele se afastou e sumiu no tempo, no espaço, por trás dos flamboyants da praça, dos coqueiros, do canteiro de flores roxas, nenhum girassol (uma pena). E fechei o livro, porque não conseguia mais avançar uma linha. Eu já tinha lido tantas vezes mesmo, eu já conhecia cada frase de cor.
Abracei aquele livro como se abraça um bebê pequeno, que é frágil, que dá vontade de apertar mas não pode. Abracei tão forte que já teria matado o bebê. E só então olhei a capa. Os olhos da capa. O rosto da capa. O homem da capa. Me assustei.
E acordei.



Conto do livro Promessa Vazia (Multifoco Editora, 2010)



Imagem: Gracia Nepomuceno




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