terça-feira, 7 de setembro de 2010

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A benção - Ricardo Bruch

Abençoai os que caminham tranqüilos, concentrados, envoltos numa névoa de pensamentos fugidios, enquanto me preocupo com o estado dos meus sapatos (como me apertam os dedos!), com o furo da camisa bem debaixo do sovaco; abençoe todos que pensam na formatura dos filhos ainda não nascidos e se persignam, autômatos, quando algum pensamento ruim cutuca-lhes a nuca. Eu parei de me persignar faz tempo; tenho a impressão que esse gesto é como ligar para um número que não existe, mudou, trocou de prefixo, e por mais que eu saiba quem deva atender (Pai Nosso que estais no céu...), não adianta, o número não é esse.

Abençoai aqueles que penteiam os cabelos envaidecidos pelas manhãs, passam perfume, escovam os dentes e sabem ver a beleza dum pálido raio de sol. É possível que eu os encarasse melhor se meu cabelo não estivesse tão desgrenhado, cobrindo meus olhos; talvez também sorrisse se meus dentes estivessem mais apresentáveis.

Abençoai-os por perdoar as falhas do próximo.

Abençoai-os por ter empregos, nutrir o coração servil, obediente para ir, vir, voltar à necessidade do chefe, do marido, da esposa, filhos e mais filhos, cujos estômagos incham de ansiedade no final do mês; desincham depois numa fila de mercado, com um pacote de bolacha e migalhas permanentes no canto da boca.

Abençoai os que passam por mim e não esquecem; se compadecem e rezam e rezam e rezam, enquanto eu mesmo estou esquecido e fujo para o centro de algum lugar para me lembrar disso.




Imagem: Paul Dzik




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