A palidez da pele e os olhos parados a olhar-se no espelho davam-lhe a certeza da brevidade de seus dias. Não queria crer em mais nada, nem confiaria na existência de algo maior que seus próprios medos. O sentimento que lhe arrebatava em imediatos segundos devolvendo-a estupidamente à realidade era algo indesejável ao mais louco dos homens. Sentia repulsa de si mesma e dignava-se a cortar a pele com um estilete improvisado de gilete. O sangue escorria livremente nas ranhuras manchando os lençóis. Ela se sentia só e sóbria. Soberbamente realizada. Não queria morrer. Nunca sentira necessidade de acabar consigo mesma. Tudo era apenas um belo ritual de auto-purificação. Fixava o olhar na lâmpada negra ao centro do teto e devaneando encantos se via deitada ao centro de um imenso jardim. Roseiras cresciam desordenadamente abraçando-lhe o corpo. Os espinhos rasgavam-lhe a carne encharcando as pétalas de um vermelho púrpuro desigual. Seus lábios simulavam beijos que nunca encontravam uma superfície quente e úmida que retribuísse as carícias ensaiadas. E lá, ao centro do quarto, ficava deitada à espera que o desespero que lhe assombrava tomasse a forma inesperada de um macho que sem qualquer pudor invadisse-lhe a alcova e desfrutasse de toda sua vulnerabilidade. Sonhava digladiar-se, contorcer-se febrilmente, rompendo com todos os valores, escandalizando a quem lhe cobrava compostura. Desejava escandalizar-se, rasgar-se inteira e completamente, sangrar até a última gota de esperança. Gozar minutos inúteis em futilidades bestas. Desejava amar, amarrar-se a sombras, deglutir prazeres frenéticos. Gozar inutilmente. Desejava o mais viril dos homens lambendo-lhe as entranhas, estranhamente desvendando-lhe o sexo. Desejava a mais fútil inutilidade. Um prazer de repente no meio da noite, em silêncios e gemidos de brisa. Em sorrisos e gemidos de brisa. Em gemidos e gritos de vento.
A friagem da noite arrepiava todos os pelos de seu corpo. Inconseqüentes delírios deitada ao mármore frio. O quarto se alargara em um imenso brejo. Acariciando os seios sorria enquanto a outra mão tocava a virgindade despudorada. Fechou os olhos tremulando inteira. Impossível revelar as sensações, impossível nomear-se. Impossível não ser em profundo êxtase. Impossível ser. Quando abriu os olhos percebera quão inútil desequilíbrio. O quarto estava cheio de sapos, saltitantes com suas línguas enormes a lamber as muriçocas que voavam em torno das lâmpadas. Todos os sapos, enormes, miúdos, verdes claros, escuros, marrons. Rãs, pererecas, cururus, sapos-boi, zolhudos, tomates, ceras e todo tipo de anuros. Saltavam ao redor de seu corpo, atraídos pelo cheiro emanado. E, os sapos saltavam sobre ela, lambendo o sangue em sua pele, e surgiam mais sapos, infestando o quarto com um coaxar ensurdecedor. Fechava os olhos tentando lembrar-se do próprio nome, tentando esquecer a saparia, tentando não crer na existência de sua loucura. Mas, ao abrir os olhos podia perceber que havia mais sapos sobre a cama, sobre a cômoda, sobre todos os móveis do quarto. Os sapos se multiplicavam e tomavam conta de tudo. Aos poucos, ela sumia. Impossível ver-se ao espelho, impossível vê-la. De súbito, um sapo enorme abrira a boca e engoliu aos poucos aquela criatura que nem mais parecia gente. Sua palidez foi desaparecendo lentamente, enquanto o sapo ficava cada vez mais gordo. enorme. Os olhos do sapo cresciam, seu corpo inchado se expandia pelo quarto. Suas cores transmutavam. Em alguns instantes o anuro explodiu, espalhando uma gosma esverdeada pelas paredes. Lá no chão, um corpo se contorcia misturado a uma estranha placenta. Virgínia renascia.
Imagem: Frederick Dunn
1 Comentário
eta flávio q escreve bem!
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