sábado, 18 de setembro de 2010

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FILOBÔNIO FILÓ - parte 11

- lotação

Filobônio Filó, tranquilão, espera pelo ônibus. Tem negócios
para resolver no centro.
Uma lotação pouco lotada oferece o mesmo destino pelo
preço do ônibus. Filó, é claro, aceita, afinal, poderá ir sentado, a
lotação é espaçosa, e as janelas amplas proporcionam uma melhor
vista da paisagem da cidade. Felicidade maior não existe.
E a lotação, uma Kombi 1970, vai cortando amanhã em
direção ao seu destino. Chacoalha, engasga um pouco, mas segue,
segue, vai seguindo. E parando nos pontos. E lotando, lotando,
lotando. Filó, agora espremido entre uma mulher gorda e um
lutador de boxe, não se lamenta pela escolha. Já não vê mais a
paisagem externa, mas o que vê dentro da Kombi compensa essa
pequena perda: um menino de dois metros, um executivo
banguela, gêmeas siamesas que ocupam um só banco, a bela e
jovem mãe de sêxtuplos com todos os filhos e mais um sobrinho, o
entediado canário com seu dono de 100 anos.
Maravilhado com os companheiros de viagem, Filó pensa em
Deus, na variedade das gentes criadas por Deus. E agradece
também pela robustez da Kombi, que avança inteira e destemida
por entre os carros e os ônibus em direção ao centro.

- o sapo virtual

Tarde da noite, Filó rola na cama, pra lá e pra cá. No escuro,
tenta de tudo para dormir: conta carneirinhos, cabras, ovelhas
inglesas, esses bichos todos... e nada! Inventa histórias de dormir,
cria nomes, palavras novas, mas nada disso adianta. Somente ao
amanhecer é que ele se recorda do barulho dos sapos, do coaxar
infernal que preenchia as noites da sua infância.
Pela manhã, um mal-dormido Filó deixa a sua casa em busca
dos brejos, dos sapos que há muito não vê, não escuta. Vai em
direção ao bairro onde foi criado – porque lá é assim de brejo, é o
que ele pensa.
O bairro da sua infância, no entanto, assim como toda a
cidade, já não é o mesmo: os terrenos baldios agora estão
ocupados por casas, por fábricas, por prédios tão grandes quanto
os do centro. Não existem mais os campinhos de futebol, e o
verde, o pouco verde que sobrou está escondido atrás dos muros
erguidos pelo medo.
- Mas e os brejos, cadê? – pergunta Filó a um passante.
- Brejo? Tem brejo aqui não, aqui tem é casa.
Filó olha à sua volta e é obrigado a concordar: casas, casas,
casas. Os grandes brejos da sua infância agora são apenas isso:
lembrança.
- Sapos, então, nem pensar...
O passante, agora parado (um parante?), abre o sorriso e fala:
- Aí já é diferente. O senhor entra aqui, quebra ali e vai dar lá
naquela rua. Tem um monte de sapo lá, o senhor vai ver. Eu
escuto todo dia.
Um grão de esperança brilha nos olhos de Filó. Talvez
encontre ainda o último brejo do bairro, da cidade, o último brejo
do mundo, por que não?
O que Filó encontra, porém, não é nem de longe o último
brejo do mundo: é uma moderna loja de produtos eletrônicos.
Perdido entre softwares e programas mil, disquetes e
CDRoms, Filó se dirige ao lojista e pede, quase sussurrando:
- Um sapo, pelamordedeus!
- Um sapo?
- É, um sapo, aquele bicho que coaxa – ou coaxava, sei lá!
filobônio filó
- Ah, bom! – diz o lojista. – Saquei. Tenho aqui exatamente o
que o senhor procura. Som estéreo e tudo.
- Estéreo?
- Pra parecer de verdade. O senhor vai se sentir entre eles.
- Som estéreo...
Filó deixa a loja com um sorriso quadrado. Em suas mãos, uma
caixinha contendo um CD gravado nos longínquos brejos da
América. Sapo Virtual – esse o nome do treco. Recomendado,
segundo o lojista, para as longas noites de insônia.

- blaurtututu!

Da janela, Filó observa a costumeira paisagem de pedra
composta pelos edifícios. Logo acima deles, porém, um dia lindo
pra chuchu se mostra todo brilho e esplendor. Emocionado, Filó
decide saudar o sol com as mais belas palavras, mas o que sai da
sua boca é um misterioso e incompreensível Blaurtututu! Surpreso,
ele repete a tentativa de saudação:
- Blaurtututu!
E mais uma vez:
- Blaurtututu!
Desconcertado pela desconcertante palavra, Filó solicita os
serviços de um especialista em fonética:
- Repete preu ver – diz o homem.
- O senhor vai ver ou vai ouvir? – corta Filó, irônico.
- Repete, por favor.
- Mas a palavra é estranha, tô avisando...
- Repete preu ver.
- Filó limpa a garganta, respira fundo e dispara:
- Bom-dia, sol!
O especialista encara Filó. E diz:
- Mas o que há de estranho nisso? Tá brincando comigo?
Encabulado, Filó se desculpa e explica que não foi assim, que
não foi essa a frase, muito embora estivesse pensando nela, que o
que saiu da sua boca foi uma palavra estranha, mas estranha
mesmo, um palavrão.
- Então repete – ordena o especialista, já sem paciência.
- Bom-dia, sol – é o que sai.
Xingando Filó de maluco, de doidão, o especialista se manda.
Novamente na janela, a sós, um conformado Filó volta a
saudar o dia:
- Blaurtututu! – é o que ele diz. – Blaurtututu!

- filosóficas X

- eu sou um cara persistente em tudo – até nos erros

- entre o banheiro público e a estátua

Diante do banheiro público, Filó, apertado, hesita. Tudo por
causa da estátua de bronze fincada na praça em frente. Quem
teria sido o sujeito, ele se pergunta.
Dois passos em direção à estátua, dois em direção ao
banheiro. O banheiro vence – não, vence a estátua. Filó se
aproxima, tenta ler a placa de identificação, não consegue. Cocô
de pombo em tudo. E o xixi agora gritando pelo banheiro.
Filó dá as costas para a estátua, pisa firme em direção ao
banheiro. Bem na porta, muda de idéia, e volta à estátua. Sob o
cocô, Filó adivinha um nome: Pedro. Dom Pedro, Pedro Álvares
Cabral? Ele não sabe – sabe apenas que precisa mijar, e por isso se
volta outra vez para o banheiro.
Mas qual Pedro, meu Deus!, são tantos na História... Agora
realmente intrigado, Filó volta à estátua. Uma grossa camada de
cocô ressecado lhe esconde a cara. Pedro o quê?

pequena nota complementar: o xixi, cansado de tanto vai e vem, de
tanta indefinição, desiste de se conter e escorre pelas pernas de Filó, ganha a
calçada e vai se instalar, sereno e tranqüilo, num buraco a dez centímetros
do banheiro público. E a estátua, bem... a estátua só Deus sabe. E os pombos.

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