Um amigo, faz uns tempos, emprestou-me um livro onde um jornalista entrevistava oficiais do exército brasileiro que deram “sustança” ao golpe de 64, que apoiaram os generais para que tudo desse certo. Eu fiquei boba quando li aquilo: os caras não tinham o mínimo preparo para o que estavam fazendo, foram, mesmo, “na onda”, acreditaram em tudo o que lhe disseram e se deixaram guiar direitinho por um tal de Estados Unidos, que naquele momento desejava governos militares para o resto do continente americano. Na ocasião, fiquei de queixo caído, mas mais de queixo caído fiquei, mesmo, foi na semana passada, quando, conversando com meu amigo Ivo Hadlich, muitas vezes vereador em Blumenau pelo PMDB, soube de umas coisinhas mais.
No final da conversa eu perguntei ao Ivo: “Vem cá, tu tinhas alguma formação política? Tu eras marxista, ou alguma coisa assim, por exemplo? O que te levou a querer participar de um MDB que estava nascendo?” (Para os mais jovens: MDB foi o antepassado do PMDB, a única opção que havia para os corajosos serem contra o governo da Ditadura.).
O Ivo me disse que não. Contou-me que era extremamente jovem, então, e que, como tal, gostava de rebelar-se contra o estabelecido. Foi isto que o levou ao MDB, sem a menor formação política, e contra a vontade da família. É muito engraçado o jeito como ele conta que sua mãe tinha tanto medo de vê-lo na oposição, que pedia para que ele se escondesse no mato.
Assim, tínhamos um jovem politicamente despreparado para lutar contra a Ditadura, e num instante ele foi preso, levado para o Quartel do Exército, onde amargou horas e horas esperando para saber o que iria acontecer. Finalmente, falaram com ele, e ele foi acusado de ser comunista. COMUNISTA? O que era aquilo? Gente, ele me garantiu que não sabia – foi depois daquela prisão que ele acabou indo se informar, entender o que era aquela palavra.
Bem, mesmo não sabendo o que era, o Ivo Hadlich, devidamente taxado de comunista, fazia seu papel no MDB. E como haveria eleições municipais, ele e um amigo saíram a ajudar o partido. O que levavam? Cartazes para colar nos postes, um balde de cola de trigo, e uma escada de carpinteiro. Onde é que carregavam tudo isso? Sobre uma minúscula lambreta, com suas rodinhas de nada – um dirigia e o outro ia no banco de trás, e os dois se equilibravam, principalmente na coisa de carregar uma comprida escada. Fica implícito que paravam a cada poste, encostavam a escada, subiam, e colavam lá em cima o retrato do seu candidato.
Daí, chegaram a uma região de Blumenau chamada Itoupava Central, onde funcionava a falecida Cia. Jensen, que muita manteiga e muita lingüiça produziu para todo o Brasil, no passado. Os nossos perigosos “ comunistas” também deram sua paradinha lá, para colar cartazes nos postes. E o que aconteceu? O guarda da Cia. Jensen, sem a menor cerimônia, foi lá e prendeu tudo: a lambreta, a escada, o balde de cola, os cartazes, mesmo estando eles em via pública e o guarda ser segurança de uma empresa particular.
E então, e então, o que aconteceu? Claro que o Ivo Hadlich e seu companheiro, jovens como eram, espernearam e reclamaram, até que o dono da empresa (o mesmo que mandara prender as coisas), acabou liberando tudo de novo. Já era noite, no entanto, e os nossos heróis receberam sua lambreta ... com o tanque cheio de areia! Que lhes restava fazer naqueles tempos difíceis, onde quase não havia condução? Um deles empurrou a lambreta, enquanto o outro carregava a escada e o balde, e pela rua escura e sem calçamento, andaram os doze quilômetros que faltavam para chegarem em casa. Ainda bem que eram jovens!
Pois é, este tipo de coisa era comum na Ditadura. Arbitrariedades aconteciam a toda hora. Quem não viveu aquele tempo, nem faz idéia. É por isso que gosto de contar um pouquinho, de vez em quando.
Blumenau, 11 de Abril de 2003.
Urda Alice Klueger
Imagem: Cildo Meireles, Rio de Janeiro, Brasil, 1948
Malhas de Liberdade, 1976
120 x 120 cm
Ferro e vidro
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