Do lado de fora ou de dentro do tempo a chuva não corrige déficits ou excessos
Molha, lava, escorre nas horas que se misturam às teclas, na impressora que recusa o verbo que remete a códigos e mantém a poesia submetida a normas
Não quero para o poema um corpo modelado por um espartilho de representações
Não quero que as palavras sejam instrumentos ortopédicos e ortopráxicos
Porque o meu poema não se alimenta da tradição vendida nas esquinas de nutrição desavisada que forma e identifica
Porque o meu poema não retrata o vivo, o morto, a alma, o corpo, nem padece de regulações
Porque o meu poema é imponderável e inexato, é inesperado e transita com extravagância na previsibilidade, foge do intelecto
Porque o meu poema tem uma cadência própria, sensível arritmia, balanço imperscrutável
Porque o meu poema é inflexível no contraponto à harmonia que enlouquece, às sílabas que se apagam e iluminam nos sussurros (o meu poema sopra e murmura)
Porque o meu poema bebe no paradoxo da letra a dúvida e a convicção
Porque o meu poema come na dialética a contradição entre a luz e a sombra
Porque o meu poema não se enquadra, não se sujeita a normas amigas, fraternas, maternais, que regulam e moldam os versos selecionados por modelos de significados que igualam os corpos que caminham por esquemas disciplinados
Porque o meu poema continua inconformado e inquieto, é irreverente, insolente, desobediente a leis que o façam dizer o código que unifica os corpos confinados em um tônus que formata trilhas
Meu poema tem uma habitação
O corpo que não quer acrescentar ao que falta; complementa
O corpo que busca o que não foi escrito, refeito, cultivado
O corpo na fronteira extrema da palavra
O corpo que fura a simbólica como uma onda do mar
O corpo que é chão, rés, solo, território sem terra, ar, água, fogo, concreto ou mitos
O corpo que é cenário de vocábulos desvirados, significados desditos
Meu poema mora na pele, na carne, no sangue, nas entranhas, na ausência de cor, som, tempo, espaço
Meu poema reside no espanto, no assombro, no impacto, na emoção, na exaltação dos sentidos
Meu poema transpira, respira, é o grito que escapa e dá voz
Ao mistério, ao secreto,
ao privado, ao íntimo
Ao outro que com ele irrompe
no fascínio
Ao que é sua diferença e similitude,
anima, paixão, loucura e drama
Ao que é vigor, ternura, clima
Do brado que afirma - e com ele assina -
meu poema é firma.
Imagem: Abdul Kadi Raudah
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