domingo, 31 de outubro de 2010

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FILOBÔNIO FILÓ - parte 17

1
- o novo continente

Dentro da mais absoluta escuridão, Filó procura por uma luz,
uma luz qualquer, como a de uma lanterna, por exemplo. Porque o
escuro se fez assim, como um raio, trevas sobre trevas, um estalo
e tudo escuro, a vida escura.
Filó encontra uma vela, uma delicada vela que ele acende
dentro da mais absoluta escuridão, que agora, depois da vela, já
não é mais isso, é outra coisa menos escura. Com a vela na mão,
Filó explora os quatro cantos da casa e em cada um deles encontra
coisas que nunca viu: uma pequena fenda na parede, uma aranha
antiga escondida na fenda, no ventre da aranha escondida na
fenda o desenho mais que sugestivo de uma vela acesa.
Maravilhado com o espetáculo que só mesmo um blecaute
poderia proporcionar, Filó anda pela casa, pela primeira vez, com
os olhos de quem nunca viu, a vela na mão feito uma bússola, com
a natural ansiedade daquele que descobre na escuridão um novo
continente.

2
- no museu

Primavera, domingo de sol, céu azul. Filó decide fazer uma
visita ao museu de arte da cidade.
Antes de sair de casa, um banho no capricho, no capricho
também a barba, o terno mais elegante, porque, enfim, não é
sempre que.
Um ônibus, um metrô, a baldeação na estação central, outro
metrô, outra baldeação e finalmente Filó diante do museu.
Depois de três agradáveis horas na fila, Filó se depara com
uma tela de um mestre impressionista. Profundamente
impressionado, diz ó!, e em seu ó!, com certeza, cabem séculos de
História da Arte. Logo mais, outra tela, outro ó! E outra tela, outra
tela, outras telas, que magnífico!, ó!, ó!, ó! No entanto, Filó fica
mesmo impressionado é com os outros visitantes da exposição:
nenhum deles emite um único ó! Gente educada, é claro, gente
culta é assim.
Muitas telas depois, Filó volta para casa. Impressionado ainda,
tenta fazer um balanço do que viu. As cores ainda giram em sua
cabeça, a luz, as formas se misturam.
- Que tal o museu? – pergunta um vizinho.
Filó pesca palavras na tentativa de responder. Demora. Por
fim, responde apenas:
- Ó!

3
- filósoficas XVI

- dialética é o que antecede a noitelética

4
- os guias da modernidade

Numa época marcada principalmente pelas rápidas mudanças,
nada mais comum que a proliferação indiscriminada de toda
espécie de manuais. Eles estão nas ruas, nas sarjetas, nas barracas
dos camelôs, estão em todos os lugares, e cobrem com incrível
eficiência a mais variada gama de assuntos: numa lojinha de
esquina, por exemplo, podem ser encontrados manuais de corte e
costura e também de etiqueta, manuais da jovem mamãe e da
amamentação sem dor em dez lições, entre outras pérolas de igual
teor.
Homem de seu tempo, atento aos mais variados movimentos
da sociedade, Filó não ignora a moda dos manuais. E nem poderia:
serve-se desses inestimáveis opúsculos (com o perdão da palavra!)
do café da manhã ao jantar, em todos os dias úteis e inúteis, e
deles se utiliza até mesmo na mais recatada das horas, que é a do
banheiro. Para uma operação mais requintada (como a de traçar
um delicioso jabá pilado na farinha, por exemplo), Filó busca nos
manuais o procedimento mais adequado, a tranqüilidade do gesto
que, se bem executado, pode levar sem sustos a colher à boca.
Aos manuais, portanto, pelo valor que lhes é atribuído, cabe o
destacado papel de Guias da Modernidade. Porque sem eles
ninguém mais vive, ninguém mais opera, ninguém funciona – muito
menos Filó, que, em segredo, já elabora um mais-que-perfeito
Manual dos Manuais, livro que elevará o gênero, com certeza, à
cobiçada condição de Obra de Arte.

5
- ônibus

Tarde chuvosa, encontramos Filó no interior de um ônibus. No
ônibus, é claro, outros passageiros. Passageiros indignados, devese
dizer, porque não chove apenas do lado de fora, na rua: chove
também dentro do ônibus, sobre suas cabeças.
Filó, que tem sempre uma solução pras emergências, não
pensa duas vezes: para se proteger da chuva, que já alaga os
corredores do ônibus, abre um pequeno guarda-chuva florido. Os
passageiros, irritados, protestam: onde é que já se viu, um guardachuva
dentro do ônibus! Mas tá chovendo aqui, não tá?, protesta
Filó. Convencidos por tão óbvia afirmação, os passageiros resolvem
abrir seus próprios guarda-chuvas. E o que antes era motivo de
irritação transforma-se em riso.
Do lado de fora, nos pontos e nas calçadas, sob os toldos dos
bares, as pessoas que também precisam de condução assistem,
perplexas, à passagem de um ônibus lotado não só de gente, mas
também e guarda-chuvas, um originalíssimo ônibus repleto de
cores e formas, um ônibus como deveriam ser todos os outros.

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