Fiz setenta anos, comemorados com champagne e o bolo predileto com grossas camadas de creme de chocolate, nozes e passas ao rum; e tudo foi filmado - convidados, parentes, a mesa festiva -, principalmente eu, a minha decadência física.
Escrevo estas linhas enquanto assisto ao vídeo; as imagens se sobrepõem num vai e vem cadenciado, parecem ditar as minhas palavras, pontuar as minhas frases.
Quem é essa mulher usando minhas roupas? É uma estranha. Olho-a como se não existisse. Será que os outros, um dia, também ficarão me olhando, analisando?
As imagens são vivas, implacáveis, diferentes das imagens em preto e branco dos velhos retratos apagados, amarelados pelo tempo. Nestes, há um quê de mistério. As pessoas parecem guardar segredos, intrigam, suscitam perguntas: Será que foi feliz? O que terá sofrido?
No vídeo, está tudo escancarado. Será que perceberão minha tristeza? Verão a alegria perdida no sorriso, um esgar sem ressonância, sem abertura? O que pensarão? O que fui para eles? Uma pessoa misteriosa, interna, reclusa, sabe lá onde, como num filme secreto? Uma pessoa eclética, errante, a mente sempre viajando no tempo e espaço? Ver-me-ão mesmo? Visível? Acho que não. Nem eu mesma me vi.
Aquela estranha é uma mulher vencida, derrotada pela massificação, novos valores, doenças... Batalhou até certo ponto. Depois... a vontade foi para o ralo, num redemoinho veloz, crescente, perdeu o fôlego. Não me reconheço e esqueci de como eu era. Gostaria que esse filme tivesse vinte anos a menos; então todos me veriam de outra forma, em cores vivas, mais alegres. Talvez eu me visse assim...talvez...
Está tudo gravado no vídeo, mas ninguém verá nada, porque ali está aquela que eu fui...sem nunca ter sido...
Hilda Plácido
NE: conto premiado com medalha de bronze no concurso Machado de Assis da Editora Farol das letras
NE: conto premiado com medalha de bronze no concurso Machado de Assis da Editora Farol das letras
imagem: autor ignorado
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