XVII.
Mas o que era vida? O que era a morte?
Um pedacinho de metal, de poucas gramas de peso, podia truncar tenta coisa? Quem manejava o acaso? Onde estava ela agora? Em que plano distinto, em que dimensão de espaço-tempo se encontraria aquela ternura, aquele amor, os risos todos partilhados juntos? As íntimas descobertas mútuas?
Poderia ela vê-lo agora? Ouvi-lo? Saber o que ele sentia? Seria possível que ela simplesmente não existisse mais? Que a essência do que ela era se tivesse dissolvido junto com a matéria?
Ela gostava de Debussy...
Colocou o toca-fitas uma fita que ela havia comprado.
Os sons da música clássica multiplicaram-se pelos troncos das árvores.
Começava a escurecer. Com a lenha que tinha juntado durante o dia, fez uma grande fogueira, que iluminava até a pedra no centro do lago.
Sentado na rede ficou olhando as chamas. O rosto dela aparecia emoldurado pelas labaredas louras.
Meu Deus! Quantas coisas gostaria de ter-lhe mostrado! Este lugar, por exemplo! Como ela o teria adorado! Mas ela estava morta! Morta!
E ele não prestara nenhuma homenagem especial à ela depois de morta. Mas o que poderia ter feito? Lembrou-se então que há muitos anos atrás, na amazônia oriental presenciara o funeral de um jovem Índio, na tribo "Neheratáy" . Havia estudado o dialeto deles e o falava bastante bem. Bem o suficiente para compreender todas as palavras do Canto dos Mortos, que todos os Índios adultos tinham cantado para o jovem morto.
E se cantasse para ela, o Canto dos Mortos da Tribo de Neheretáy?
Sem saber por que, pegou a pistola automática, e com ela na mão, entrou no pequeno lago, deu algumas braçadas com o braço esquerdo, mantendo a pistola fora da água com a outra mão, até chegar à pedra que ficava no centro da água.
Ergueu-se de pé sobre a pedra e gritou:
__"Namberehôy hitá!
Tyawêmbe-nehoy!
Tyawêmbe-nehoy!"
E então, com uma voz bonita, bem cadenciada, dolorida e cheia de saudade, começou a entoar o Canto dos Mortos:
__"Toystáre naherú ambê-nehay,
Liútznê-liútzne, ambê tawê rherôy...
Nawêmbe nyheráy tawaystorê,
Niháy, Awá tiâmsterôy..."
Arauá, de seu esconderijo viu-o subir na pedra e iluminado pela fogueira, primeiro gritar, e depois começar a cantar.
Arauá, o místico primitivo, já não era mais tão domo de seus sentimentos e emoções.
Com o coração cheio de tristeza, percebeu até onde ia a dor daquele homem branco.
E quando seus ouvidos atônitos ouviram o canto pensou: __"o Canto da Morte de Neheretáy! Ele tomou enfim sua decisão, como Nehay! Ele pensa que está cantando para outra pessoa, mas canta para ele mesmo! Entoa o seu próprio Canto da Morte!"
Arauá saiu das sombras e encaminhou-se para a beira do lago. Sabia que o homem não o veria. Sabia que além das águas agora escuras que corriam na sua frente, unindo-se após terem sido divididas pela pedra, ele não veria nada! Seu desejo era unir-se à pessoa que se fora, era saltar da pedra da fatalidade que os dividira!
Arauá sentou-se na areia, de pernas cruzadas, a uma dezena de metros de distância do homem que cantava. Percebeu todas as cores, das várias forças e entidades que lutavam entre si, ao redor do homem branco. Viu nitidamente, as cores da vida, e as cores da morte. Sentiu como o homem estava alheio à batalha à sua volta, enquanto cantava. Arauá sentiu então melancolicamente, que se tivesse encontrado antes e em outras circunstâncias aquele homem, teriam sido grandes amigos. Era alguém com quem aprender. Alguém a quem ensinar...
Mas, agora era tarde demais! No turbilhão de forças espirituais que lutavam agora sobre sua cabeça do homem branco, Arauá notou que uma se destacava das outras. Usando suas próprias forças interiores, conseguiu ver com os olhos da mente, um rosto de uma mulher. Tinha a pele muito clara, os cabelos como Arauá nunca vira, eram como os raios do sol, e os olhos tinham a cor das folhas da mata!
Arauá quase perdeu o domínio de si mesmo!
Aquele rosto estava transfigurado pelo desespero, e tentava comunicar-se com Arauá!
Mas Arauá não conseguia compreender as palavras na língua estranha em que a mulher tentava lhe falar! Então entendeu! Ela pedia-lhe que impedisse o homem branco de fazer o que ia fazer!
Os olhos de Arauá escorreram torrentes de lágrimas! Suas mãos e todo seu corpo se tornaram trêmulos, mas ele não podia fazer isso. Teria sido muito fácil, com uma de suas flechas arrancar a arma da mão do homem branco, ou então concentrando parte de sua força mental, fazer o homem escorregar e cair na pedra, ou ainda imobilizar a mão que segurava a arma.
Mas, não! Não podia fazer isso! Não podia interferir dessa forma com o "ká", destino daquele homem. Pois se o fizesse, se tornaria responsável por tudo que o acontecesse àquele homem branco, de bom ou de mal, teria que se transformar em seu guardião para sempre! Não, não podia!
Então, o homem nu que cantava sobre a pedra, levantou o braço, encostou o cano da pistola na fronte direita e apertou o gatilho!
Um esguicho de sangue subiu de sua cabeça, e o corpo tombou de bruços sobre as águas que se uniam depois da pedra. Imediatamente, as forças e entidades que estavam ao seu redor desaparecera
O corpo foi boiando lentamente, rio abaixo...
Arauá ficou na mesma posição a noite toda.
Quando o sol despertou, levantou-se e sem tocar em nada do acampamento, foi-se embora, à procura de suas plantas medicinais, pois para isso é que tinha vindo até ali. Por entre as árvores, o vento brincava com as coisas e passando por baixo de uma rede, folheou um livro caído no chão, imobilizando-o numa página que dizia:
Verde que te quiero verde,
Verdes ramas, verdes vientos.
El barco sobre la mar
Y el caballo en la montaña!...
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