domingo, 10 de outubro de 2010

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Olhos de Selva Azul [7] - Lenine de Carvalho
























VII. 


O cheiro estava delicioso. O lombo inteiro do porco selvagem, atravessado por uma vara verde, estava apoiado em duas forquilhas enfiadas no chão. Embaixo, num buraco raso, cavado com a faca de caça, um braseiro vivo assava a carne.

Num improvisado fogão de pedras, estava a frigideira, onde havia feito vários bolinhos de farinha de trigo e também aquecido a água para fazer um café.

Abriu uma pequena caixa e sorriu. Ali havia sabonetes, cotonetes, fio dental, escovas, dentifrícios e material para barbear-se. Alguns hábitos civilizados eram impossíveis de se perder, pensou. Despiu-se completamente, pegou um sabonete e desceu até o rio.

Verificou se o barco estava bem amarrado, colocou mais alguns ramos cheios de folhas verdes sobre os tambores plásticos de gasolina e molhou-os para evitar evaporação. Feito isso, foi entrando lentamente na água fresca e transparente do Abunã. Quando a água estava pela cintura parou. Então abaixou-se até submergir a cabeça, ergueu-se e começou a ensaboar-se.

A água estava agradável e ele sabia que no Abunã não havia piranhas em número suficiente para representar algum perigo. Deixou o sabonete na margem e virando-se mergulhou de cabeça, nadou por baixo da água com os olhos abertos, observando a areia branca e fina do fundo, alguns seixos arredondados e alguns peixe minúsculos que estavam a sua volta. Era impressionante como era límpida a água do Abunã.

Emergiu e deu algumas braçadas vigorosas contra a correnteza leve do rio e depois voltou para o pequeno acampamento.

Ainda nu, sentou-se na cadeira dobrável de lona e começou a comer a carne assada com os bolinhos de farinha acompanhados pelo café.

E pensar que há apenas três dias atrás estava em São Paulo, arrumando as coisa para a viagem, limpando e lubrificando as armas, escolhendo os livros que traria... Reviu mentalmente seu amplo apartamento, a imensa biblioteca, a sala de ginástica com aparelhos e um " tatami " onde duas vezes por semana um professor coreano vinha dar-lhe aulas de artes marciais.

O tapete macio da sala, a lareira, um "pegnoir" azul de seda sobre uma poltrona. Então a lembrança dela atingiu-o brutalmente, ouviu sua voz macia e quente, sentiu a pele aveludada, e dois olhos azul limpo e brilhante, que foram crescendo em sua frente, crescendo e crescendo, tomando conta da mata, do rio, do céu, da tarde que morria!... Pôs-se de pé, abruptamente. Grossas lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, os punhos cerrados com toda a força, uma mão invisível apertando-lhe a garganta, impedindo-o de respirar, uma dor fina e aguda atravessando-lhe o peito. Caiu de joelhos. Os dedos enterraram-se no solo macio. Por entre as lágrimas murmurou baixinho: "Você está aqui?" Então, erguendo o rosto gritou: "VOCE ESTÁ AQUI? PODE OUVIR-ME? DÊ-ME ALGUM SINAL! COMUNIQUE-SE COMIGO, EU LHE PEÇO!"

Um nhambú guaçu piou ao longe... Vários outros responderam.

Chorou durante muito tempo, ajoelhado no chão.

Depois, acalmou-se. Levantou-se, foi até a beira do rio, lavou-se e vestiu-se. Colocou um tronco grande e grosso na fogueira, que deveria queimar toda a noite e entrou na barraca, deitando-se na rede.

Deus, como era difícil suportar a ausência dela!...

Como era mais difícil ainda, saber que essa ausência era para sempre...



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