sábado, 13 de novembro de 2010

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Cartas para o nunca VII - Edson Costa Duarte

VII


Sejamos cúmplices da trajetória da vida.

E nunca mais esqueçamos que um dia o vôo vem: sem asas e sem nenhum artifício.

Sejamos cúmplices sem culpa protocolada em cartório ou álcool que nos sustente. E sendo assim tudo amacia tudo declara que nada vale mais a pena do que o definitivo silêncio. Em toda busca há isso do perder-se em si e o saber-se vela ao mesmo vento.

Lembrança sempre presente sem precisão de apropriar-se da palavra inexistente. Vacinar-se contra a solidão ausência de si mesmo estar ao léu planta que nasce e cresce em qualquer lugar, seja uma terra árida seja uma terra insana, mas onde sempre se nasce.

Estejamos assim nada suplicantes de desejos, que haja sim o instante seguinte, que nada seja adiado, que não nenhuma súplica, que nós possamos habitar o tempo sem um contorno que seja tão explícito. Sem tanto corpo em que percorremos o espaço inútil e apertado, que susto, de nosso sentimento. Nunca conhecemos bem o sabor de construir lentamente o alicerce de um destino que a si mesmo se contempla.

Seremos mais uma semana, gratuita, meses, anos, e só assim é o tempo. Coisa fácil. E só assim os segundos se refazem, minutos que se completam, sacrificando os dias, e os sonhos sendo os fios dos quais tudo se tece. A cada dia um dia beija a boca de um novo dia. E assim continuamos a vida, seres singulares e anônimos.

Na porta de entrada há uma luz que desconheço. Isso me inspira medo e confiança. Assusta. Não é possível descrever as cores, são como que um milagre em susto, coisa encontrada feito um impossível contorno de um corpo que agoniza em minha frente. Não é preciso dizer mais nada.

Esforço-me para ser claro, direto, objetivo. Mas é quase impossível fazer um trajeto, um plano que se siga sem nenhum desvio do planejado de início. Impossível não calar diante de tanto desperdício. É possível, é preciso ir um pouco mais além, sem controlar tudo, sem uma direção que nos diga os caminhos seguros da existência.

Que não se peça nada. Que não se implore. Nem se esmole um pouco do prazer vendido na liquidação da esquina. Que nada disso que se fala tão certo, tão correto, seja a única opção sensata de se livrar do perigo. Que não haja isso de determinar de antemão a polêmica do encanto.

Que nada seja tenso, embora intenso e chama, que nada seja preparado feito prato pronto, fast food, que nada seja o querer assim determinado e justo. Coisa pronta. Coisa fria. Roteiro definido. Domingo à noite. Definitiva sociedade com o já visto.

Sejamos cúmplices da fúria. Do afogamento dos sentidos. Do dilapidar todos os bens, desejos devastando tudo, línguas de fogo incontroláveis e insanas. Sejamos cúmplices do desastre. Da catástrofe. Da ruína.



DO LIVRO “CARTAS PARA O NUNCA” (2010)

Imagem: DragonArtz Designs

2 comentários

Tarcísio

Vivo, por isso sinto-me mais vivo.
Obrigado.

Nina Veiga

Bora lá!