sexta-feira, 19 de novembro de 2010

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O trabalho escravo no Brasil: alguns olhares

O que diferencia a escravidão da época colonial da escravidão do século XXI é que nesta inexiste comercialização e tráfico: o trabalho escravo tem um recrutamento coercitivo e prática trabalhista degradante, com a privação de liberdade.

O chamado "Gato” intermedia a mão-de-obra entre o empregado e o empregador. Atrai o trabalhador para exercer funções em outras localidades, com falsas promessas de excelentes salários e acomodações.

O empregador usa de ameaças para manter o empregado em sua propriedade e lhe vende produtos por preços elevados. São cobrados altos valores pela alimentação, moradia e vestuário e o trabalhador jamais consegue saldar suas dívidas. É impedido de sair do lugar onde foi confinado - fazenda ou local isolado geograficamente que impede escapes – por seguranças armados e tem seus documentos retidos.

Os alojamentos são precários e a comida é, muitas vezes, preparada no chão. A água de consumo não tem tratamento. Os empregados não têm preparo ou treinamento para o uso dos equipamentos de trabalho e de proteção que, por sua vez, são inadequados ou sem condição de uso.

Vasta legislação dispõe sobre tais práticas trabalhistas:

O artigo 149 do Código Penal Brasileiro, de 1940, tipifica-as, considerando-as crime;

a legislação trabalhista no meio rural (lei n.º 5.889 de 08/06/1973) dispõe sobre obrigação de garantir os direitos trabalhistas;

Acordos e Convenções Internacionais (as de 1930 e 1957) que tratam da escravidão contemporânea, ratificadas pelo Brasil;

a declaração de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho e seu Seguimento (de 1998).

É estabelecida pela legislação brasileira a responsabilidade legal do empresário por todas as relações trabalhistas de seu negócio. A Constituição Federal de 1988 condiciona a posse da propriedade rural ao cumprimento de sua função social, sendo de responsabilidade de seu proprietário tudo o que ocorrer nos domínios da fazenda.

O não cumprimento da legislação é alheio à falta de conhecimento desta. As ações fiscais demonstram que quem escraviza no Brasil não são proprietários desinformados, escondidos em propriedades atrasadas e arcaicas. Pelo contrário, são grandes latifundiários, bem assessorados, que produzem com alta tecnologia para o grande mercado consumidor interno ou para o mercado internacional.

Fatores diversos contribuem para a prática do trabalho escravo, como a denúncia reduzida, a sanção penal insuficiente (dois anos) e as questões quanto à competência para julgar o crime. Se julgado, vários dispositivos permitem abrandar a eventual execução da pena. Além disso, a atuação dos fiscais do Ministério do Trabalho é morosa, dado o confinamento dos trabalhadores em lugares afastados dos grandes centros, fazendo com que os aliciadores se aproveitem da ausência de órgãos fiscalizadores. As poucas denúncias feitas são atendidas dois, três dias ou até semanas depois, o que contribui para que os empregadores eliminem as provas que poderiam confirmar a degradação do trabalho.

Medidas vêm sendo tomadas na tentativa de atingir economicamente quem se vale desse tipo de mão-de obra. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) quer evitar que empresas estrangeiras importem do Brasil bens produzidos com trabalho escravo, impedimento que já existe no mercado interno: grandes empresas assumiram com a OIT o compromisso de fiscalizar seus fornecedores e de não comprar de nenhum suspeito da prática do crime. Ações são movidas pelo Ministério Público do Trabalho e aumenta o número de Ações Civis por danos morais, aceitas por juízes do Trabalho com valores cada vez mais elevados.

O governo criou em 2004 um cadastro dos empregadores flagrados explorando trabalhadores em condição análoga à de escravos. Inserido nesse cadastro, o infrator fica impedido de obter empréstimos em bancos oficiais do governo e entra para a lista das empresas pertencentes à "cadeia produtiva do trabalho escravo no Brasil”. Esse Cadastro de Empregadores, atualizado semestralmente, é chamado de “lista suja” e qualquer pessoa pode consultar se alguma propriedade está na relação.

Foi criado o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, cuja implementação é coordenada pela Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) e foi lançado, em 2005, o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil, que reúne empresas que se comprometeram em não permitir trabalho escravo.

Em 03 de Novembro de 2010 foi publicada, pela Comissão Pastoral da Terra, a Carta-Compromisso contra o Trabalho Escravo assinada durante a campanha eleitoral pela presidente eleita Dilma Roussef e os 12 governadores eleitos dos estados de Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Piauí, São Paulo e Sergipe:

“Seguem os compromissos da Carta, organizada pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e pela Frente Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo:

1) Não permitir influências de qualquer tipo em minhas decisões, que me impeçam de aprovar leis ou implementar ações necessárias para erradicar o trabalho escravo;

2) Efetivar as ações presentes no 2º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, além de apoiar a implantação e/ou manutenção de comissões e planos estaduais para erradicação do trabalho escravo;

3) Atuar na articulação política pela aprovação de leis que contribuirão para a erradicação desse crime – como, por exemplo, a proposta de emenda constitucional 438/2001 que prevê a expropriação de imóveis onde for encontrado trabalho escravo; (Comentário: a proposta foi aprovada em dois turnos no Senados e em primeiro turno na Câmara e está parada desde então por conta da pressão da bancada ruralista)

4) Não promover empreendimentos e empresas, dentro ou fora do País, que tenham utilizado mão-de-obra escrava ou infantil. Por outro lado, apoiar as empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo a combater a incidência desse crime em setores produtivos;

5) Destinar recursos e garantir apoio político para a manutenção das ações de fiscalização de denúncias que resultam nas libertações de trabalhadores;

6) Fortalecer a prevenção ao trabalho escravo, ampliando os programas de geração de emprego e renda nos municípios fornecedores de mão-de-obra escrava, priorizando a reforma agrária nessas regiões e fortalecendo as ações de reinserção social dos libertados;

7) Garantir proteção aos defensores dos direitos humanos e líderes sociais que atuam no combate à escravidão e na defesa dos direitos dos trabalhadores;

8 ) Apoiar o cadastro de empregadores flagrados com mão-de-obra escrava, conhecido como a “lista suja”, instrumento criado por intermédio da Portaria 540/2004 do Ministério do Trabalho e Emprego, que tem sido um dos mais importantes mecanismos de combate a esse crime;

9) Por fim, asseguro que renunciarei ao meu mandato se for encontrado trabalho escravo em minhas propriedades ou se ficar comprovado que alguma vez já utilizei desse expediente no trato com meus empregados. Além disto, garanto que será prontamente exonerada qualquer pessoa que ocupe cargo público de confiança sob minha responsabilidade que vier a se beneficiar desse tipo de mão-de-obra.”

Ainda neste ano de 2010 o Escritório da OIT no Brasil publicou dois livros: Combatendo o Trabalho Escravo Contemporâneo: o exemplo do Brasil e Retrato Escravo, em setembro. Com imagens de Sérgio Carvalho, Auditor Fiscal do Trabalho, e de João Roberto Ripper, fotógrafo, Retrato Escravo traz os escritos de pessoas envolvidas com o combate ao trabalho escravo, como Laís Abramo, diretora da OIT no Brasil e de Leonardo Sakamato, da ONG Repórter Brasil. É dele o texto da página 21, transcrito abaixo:

“As fotos aqui mostradas não são imagens, mas um chamado à ação. Alguns dos olhares perfuram e ficam dentro da gente por um bom tempo. Diante disso, há duas alternativas: tentar esquecê-los, como tem feito a maior parte da sociedade nos últimos séculos, ou encará-lo de frente e ajudar a erradicar de vez essa vergonha”.


Sonia Regina
Psicóloga e Professora
19112010


Sonia Regina fundou em 2001 o periódico digital Laboratório da Palavra e em 2009 a revista eletrônica Letras et cetera, dos quais é a editora responsável.


Fontes:











Imagem: João Roberto Ripper




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