terça-feira, 9 de novembro de 2010

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VOICES - Milena Martins



Queria aprender a patinar no gelo, a ler em hebraico bíblico e tocar violoncelo, lutar karatê e amarrar os sapatos, pilotar jet ski e dar cambalhota, ler hora em ponteiros, assobiar, nadar e dançar balé clássico, tocar piano e bateria e guitarra e baixo elétrico, harpa, viola e oboé, falar italiano, romeno e grego koiné, cozinhar, sapatear, sorrir na hora certa, falar na hora certa, dormir oito horas por dia, ter dez orgasmos por vez. Mas de tudo o que não fui ficou só a vontade. E essa dor que chamaram esperança.


Vivo calada.
Isolada no meu
Canto.


Olho o meu passado. Ele é tão feio.


O maestro disse que não sabe o que eu sou.


A única diferença entre mim e todos os que me cercam é que o meu fim tem data marcada. Isso não é um desastre. A vida é uma imposição à carcaça. A vida longa é uma tortura à natureza. Cada dia é uma perda e dizer isso é um clichê. Poupo à humanidade a dor do meu perecer.


Passei mais um dia calada à mesa do jantar. Eu não falo porque não consigo. Eles não falam porque eu estou ali. De dentro da minha cela escura, olho a rua. Lá fora não há criança nenhuma brincando agora, às cinco da manhã. Eu não sou mais criança, mas um cadáver não pode envelhecer. A luz amarela do poste em frente à minha janela se reflete na poça da chuva de ontem. Ontem ainda não secou.


Dói muito. Dói muito. Dói muito. Eu quero querer desistir, mas acho que é sina. Devo ser a moura encantada. Cada nota musical é um pedaço de morte. Sou uma cascata rubra desaguando no meu rosto branco. Sou um romance descartado de Santiago Nazarian.


Eles riem do meu nome, porque é feio. Eles riem do meu rosto, porque é feio. Eles riem das minhas roupas, dos meus sapatos, meus olhos opacos, minhas espinhas pustulentas, minhas sobrancelhas grossas com pelos sem direção. Eles riem de mim, eu sei, e talvez eu mereça. Talvez seja a minha sina, meu signo, vidas passadas, e Freud, búzios, tarôs, quiromancias, banhos de ervas, seções de descarrego e benzedeiras possam explicar. Eles podem rir de mim. Mas só eu posso cantar.


MÚSICA PLENA: Você é uma das poucas cantoras no mundo inteiro que conseguem executar mais de uma voz ao mesmo tempo, às vezes até articulando palavras ou mesmo melodias diferentes. O que te motivou a aprender essa técnica tão rara?
NARA VEIGA: Uma voz só era muito pouco.

MP: Você possui uma doença raríssima que, segundo os médicos, não te permitiria cantar. Entretanto, você é uma das cantoras com maior habilidade técnica do mundo. Ao que você acha que isso se deve?
NV: À justiça cósmica.

MP: Muitas foram, ao longo da sua carreira, as cenas de dor que seu público presenciou durante as suas apresentações. Se cantar te faz tão mal, por que você continua?
NV: Porque nem toda paixão é prazerosa.


Eu sou branca demais, branca demais, branca demais. Eu sou um fantasma. E não consigo nem mesmo gritar pra assustar os vivos.


Subi em um palco sozinha pela primeira vez hoje. Meu pai estava na plateia e foi o primeiro a levantar pra me aplaudir. Por um curto momento, acreditei que isso era amor.


Ontem fiz aniversário. Ninguém apareceu. Não tive bolo. Sou a única que poderia cantar parabéns pra mim, mas não posso. Quando eles vestirem preto e as velas acesas não forem mais pra eu assoprar, será um alívio pra eles. Às vezes penso que só vivo pra contrariar meus pais.


REVISTA CLAVEZ: Você adotou o nome Nara em homenagem a Nara Leão?
NARA VEIGA: Meu nome é Nara.

RC: Mas pela nossa pesquisa, seu nome verdadeiro é Vanilceia.
NV: Nara Veiga é cantora. Vanilceia é apenas humana.


Deixei a caixa cair. Todos os retalhos se misturaram. Achei bonito. Minha vida não tem mais ponto de partida. Olho o digital da cabeceira. São 22:22. De igual já basta o tempo. Vou deixar meus retalhos por organizar.


Eles saíram. Devem ter ido jantar. A vida deles é normal com exceção de mim. A filha, a neta, a sobrinha, a irmã que perdeu a deixa e insistiu em viver. A minha morte seria motivo de comoção nos Natais e, todos os anos, no dia que deveria ser o do meu aniversário. Na dor da minha perda, todos se uniriam pra chorar e imaginar como eu teria sido se tivesse podido viver. Mas eu fui fraca e não quis morrer.


Diva Nara,
Pensa bem, é arriscado. É melhor desistir, vai por mim. Você é a melhor, todo mundo sabe disso. Não precisa arriscar sua saúde para provar nada a ninguém. A última nota é alta demais. Por favor, não esqueça da sua doença. Seu pulmão pode não aguentar, você sabe. Estou voando para o Rio agora mesmo. Não aceite o papel antes de conversarmos. Não faça nenhuma besteira. Você sabe que dessa hemorragia você pode não passar. Quando receber essa carta, por favor me ligue.
Um beijo carinhoso do seu
Fernando.


Um pé. Eu não vi. Ele não estava lá antes. Mas estava quando eu caí. Eu não pude me levantar, eu não conseguia respirar, eu queria gritar de dor, mas ninguém ia me escutar. Escrever é tudo o que eu tenho. Nesse hospital eu nunca tinha vindo parar.


Estamos de mudança. Não faz diferença. Eu tenho quinze anos, nenhum amigo, cinco pares de All Star e um sonho impossível. Não deixo nada. Não levo nada. O Steve Perry deixou o Journey, o Freddie morreu, o James LaBrie rompeu as cordas vocais. Meus heróis não são os do Cazuza, mas eu ando tão down.


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A recordação mais antiga da minha infância é da minha mãe chorando ao meu lado no primeiro dos muitos leitos de hospital em que me deitei. Deve ter sido nesse dia que ela ficou sabendo que eu viveria pouco, que o meu ar seria sempre pouco, a minha voz, eternamente sussurrada e a minha força, extremamente nula. Se ela soubesse que eles estavam errados naquele dia, eu teria vivido. Mas desde então ela me matou.


Cantei hoje na varanda. Eles vieram ver quem cantava. Nelson me perguntou quem mais cantava junto comigo. Eu estava só. Ele não acreditou. Então cantei novamente. Espanto. Vi minha avó ajoelhada aos pés do menino Jesus guardado no quarto dos fundos junto com as madeiras velhas e as ferramentas desusadas. Quis gritar muito alto, exigir a autoria do milagre e cobrar os agradecimentos. Abri a boca, articulei a vogal escolhida. Quase, quase, quase gritei. Agora estou com medo. Antes, o silêncio me protegia de mim.


A professora faz a chamada. Não escuta a minha voz. Depois de dez anos estudando nessa mesma escola, ela ainda não sabe que tenho pulmões de pássaro, que não posso falar alto ou meu nariz sangra, que a minha voz é um sopro informe. É bom que ela nunca aprenda. Porque isso vai mudar.


Desmaiei no palco. Antes de perder por completo os sentidos, ouvi o grito de horror da plateia. Antes de fechar por completo os olhos, vi a poça de sangue ao meu redor. Meu empresário acaba de vir me trazer um buquê de flores, um cartão e os jornais de hoje. Sou capa de três dos principais deles. Os entendidos me elogiam. Não há como negar: eu sou a melhor cantora que o mundo já viu. E hoje eu só queria poder esfregar todas essas críticas na cara dos médicos, da minha família, da minha mãe.


Recolho cinco pedaços de papel na escrivaninha de meu pai. Rasuro três, jogo um no lixo. Sobrou só este e só estou escrevendo nele porque eu odeio muito. Eu odeio muito, muito. Me odeiam muito também. Eu insisto, eu insisto. Eu não vou desistir de viver até que eu possa cantar. Eu vou continuar aqui até que a vida ou alguma justiça cósmica me permita extravasar tanta música coagulada no meu sangue.


Os dirigentes do teatro decidiram que eu sou contralto porque eu alcanço o fá da primeira oitava. Depois me disseram que era mentira, que eu sou um enigma e que os recursos humanos não deviam saber que preencher o espaço destinado ao naipe vocal no meu cadastro de funcionários pode dar diarréia mental.


Fugi da escola e agora espero. Tive que roubar muito dinheiro do meu pai pra pagar essa mensalidade. Mês que vem não sei.


Querem que eu interprete uma ária medieval escrita pra um castrado. Fernando disse pra eu recusar, que pode ser arriscado.
Aceitei. Achei muito apropriado.


Risquei o fósforo, mas não consegui prosseguir. Eu odeio o meu passado, a minha infância de fantasma, a minha juventude sob risos. Eu odeio tudo de tão horrendo que já vivi, o reflexo horrendo que já tive no espelho. Mas essa caixa é um membro meu. Ela também quer sobreviver.


Eu disse:
“Mãe”.
Ela chorou.


Ontem eles vieram. Me enfiaram um cateter na veia do pulso e o sangue jorrou. Depois jogaram pra dentro de mim algum anestésico sem efeito e eu dormi. Está chegando. Eu sabia desde que nasci e não me enganei, como fazem os outros. Meu lado esquerdo não se movimenta mais. Meu pulso direito dói terrivelmente a cada letra. É insuportável, mas é preciso. Só me resta escrever agora que sou novamente silêncio. E depois de tudo que vivi, no fim só podia mesmo me esperar o grande silêncio. Minha voz é um imenso vácuo pulsando no meu pulmão fetal. Já não gorjeio. Por dentro, sou pura música desperdiçada. Amanhã, quando eles voltarem, talvez eu já não possa mais nem escrever. Cada minuto é uma perda. Todos os clichês são inúteis, que o maior deles está pra chegar. Será breve. E talvez essa seja a minha última frase: estou morrendo de derrame musical.


Perdi minha mãe. Ganhei uma bolsa de estudos.


Eu tenho sete anos e não sei falar. Eu me olho no espelho e sou muito feia. Meu irmão é grande, é bonito e sabe nadar. Meu irmão tem um futuro bonito e se chama Nelson. Deve ser bom andar na rua olhando pra frente e se chamar Nelson. A casa inteira está prendendo o ar desde que eu nasci. Devo pesar. Quando eu morrer será mais leve.


NARA VEIGA interpreta a ópera MEDEIA
Em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
NÃO PERCA!
(Mantenha a cidade limpa)


Minha voz é um feto crescendo num ventre pequeno demais. A cada música, minha garganta pare um membro paralítico do filho natimorto que insiste em se regenerar. O som nunca acaba por dentro. Sou melodia aprisionada num instrumento fadado a perecer.


Diva Nara,
Sua apresentação ontem foi a melhor execução de Medeia que o mundo já viu. Derrame mais música para o mundo. Muito mais!
Um beijo carinhoso do seu
Fernando.


Em três meses, termino meu curso de música. O maestro do coro do Municipal me chamou pra um teste. Eu sei que eu passo. Eu sei que eu passo. Eu sei que eu passo. Ele sabe disso também. Eu sou muitas cantoras dentro da minha carcaça perecível.


“Vanilceia Veiga, não sobe aí! Você vai cair!”
Queria gritar: meu nome é Nara! E eu não vou cair, bater com a cabeça e morrer agora. Só depois que eu puder cantar, cantar, cantar, pro mundo inteiro ouvir toda a minha música represada. Aí então, mãe, eu te dou essa alegria!


Quando alcancei o fá sustenido da sétima oitava, meu nariz começou a sangrar. Nunca tinha sido tanto. Senti algo arrebentando no meu peito. A dor escorreu por todas as veias. Cerrei os olhos com mais força tentando manter o vibrato sem interrupção. Abri os olhos no sétimo segundo. A plateia me olhava com horror. Fernando gritou a alguém na coxia que era preciso me fazer parar. Senti o sangue cair pelo rosto, descer pelo pescoço, entrar pelo decote e escorrer pelo meu corpo manchando o vestido vermelho. O ar faltou no décimo primeiro segundo. Faltavam ainda dois pra acabar a sequência. Os aplausos foram os mais fortes que já ouvi na minha vida.
Até que o meu fracasso me cegou.

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Priscila

Meu preferido. Cinematográfico, lírico, trágico e ofegante.