segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

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O ANJO – CAPÍTULO 3



     O corpo esguio de Ariane ventilava, na tez muito branca, a morna brisa do Sol. Deixava-se escorrer de uma água muito límpida, advinda de fonte de ouro e mármore, em filetes de azuis e verdes muito amigáveis. Ângelo espreitava-a, um pouco guloso, sereno daquelas curvas de breves e macios. A moça, lentamente. se adaptava, ainda um pouco temerosa da amplitude do astro.
- Agora já me parece mais alto... a princípio temia tocá-lo quando amanhecia. Ainda não sei muito bem onde estou, Ângelo.
- No reino das Aves, dos espíritos livres, esclarecidos de si.
- Pouco me esclareceu – e ela às vezes enfadava-se dele. Tão auto-suficiente,  aqueles requebros de orgulho... era belo, porém,  e, se insolente, era íntegro.
- Sabe, Ângelo, - ela dizia-lhe depois, na primeira refeição, - talvez eu pareça muito simples, até um pouco rústica.
- E não é?
- Sou. E você?
-Sou elevado da civilização, não da que se compete em máquinas e aço
- da que se ergue na Arte e na Cultura, na beleza
- que advinda da natureza se complementa no molde das mãos do homem, aquele que ciente de si, esclarece o deus.
-Tantas vertigens e apreensões. Vivemos na ciência da multiplicidade, quase esquecidos da forma da matriz.
- É verdade, podemos nos organizar em facções, modalidades, excentricidades. Isso é liberdade.
- Mas, e o deus?
- Tem múltiplas faces,  como nós. É único quando se enfeita e fortalece o Astro e você pode compreendê-lo batido e abstrato no horizonte, quase aço.
- E...
- A força, a água e a espiritualidade, porém, são múltiplas e dançantes, às vezes pueris, porque, não sensuais, são evadidas dos tambores e das massas... um acorde de formas e vibrações que se encerram no fato, desfazendo-o , quando se justifica, até a aniquilação, visto que a energia se entrega ao solo e depois se reduz, novamente namorando o Cosmo.
- E assim como esse lugar podemos, ao aproximarmo-nos da fonte, esquecer o peso de nossos corpos.
- É... é uma integração – ele deu de ombros. O que imaginava? – e a covinha do cinismo espreitava os olhos vítreos da amiga. Um religioso e monástico caminho em direção à unicidade?
- É que...
- Quer a si – e o efebo balançava a cabeça. Primeiro aqueça o meio.
- Aproximando-me do orgulho e poder da Matriz. Tão infinito e enervante...
- Os climas frios ensinaram, no passado,  aos homens e mulheres, os intrincados das idéias e dos afazeres. Ficou uma mancha de água e dor na alma nesses apegos aos retiros e às florestas.
- Não as aprecia?
-Também, quando quero sorver vinhos de corpo menos elástico. Preciso muito pouco de recolher-me.
- Muitos homens do povo são assim.
- Não são degenerados como os sábios edificadores dos sistemas castradores.
- Sinto certa dificuldade em responder-lhe. E também em apreciar o pão.
- Causo-lhe alguma indigestão? Não compartilho teu orgulho da própria sensibilidade, é bom que o saiba. Não a vejo como fortaleza da delicadeza.
- Sou uma mulher de asas e caminhadas, respirei muitos rios e toneladas de ares nos mares da vida.
- Mas teme a amplidão do esclarecimento, o compasso do peito nas fatias infinitas do néctar da vida. Ela, a vida, é assim como a vê, generosa, evidente, aspirada e langorosa, insolvente, vidente de desejos e armações. Não nos preza tão honestos...
- Mas você chamou-me Ariane.
- Honesta virgem de vácuos e vítreos nas sombras dos olhos, funesta nos labirintos da mente inquieta.
- Mas se pensava que meu nome evocasse o Sol e seus passos de atleta.
- E o meu as orações da Lua e suas vírgulas de inquieta.
- E não?
- E não.
- E então?
- Nas origens e seus primatas, talvez. Mas a rudeza do ritmo impôs outras marcas.
- Escaparam-se uns...
- Afeminados? Vê-me assim? Sou daqueles que se deleitam nas luzes abertas. E no leito as mulheres – e tocou-a de forma a não deixar dúvidas.
- Sei. O reino solar é o da luxúria e da natureza.
- Como é natural.
- E Ariane?
- Saída da curva do Astro, rendida ao abstrato.
- Pois o verbo solar foi erguido por machos a partir das turvas esquisitices, estroinices dos esquizofrênicos ritos.
- Para vazar e recomeçar nas fronteiras, inadiáveis, da Culpa, edificou-se os edifícios do concreto.
- Era necessário o toque de recolher.
- E depois de um longo estio levanta-se o Cálice e cobre-se de águas mornas e valentes o destino.
- Talvez te chame de Mestre.
- Prefiro ser o Anjo, o insólito, o liberto, aquele que seduz, ligeiro e molhado na simplicidade do prazer.

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