Os filhos são criados mais com livros e enciclopédias do que com brinquedos; a miúda ordena os seus livros com precisão militar e nada a indispõe mais do que saber que o irmão lhes toca. O acervo do rapaz cresce periclitante e de mãos dadas com as suas borbulhas, caótico, sem regra e prospera com a espontaneidade dos lírios do campo e até o gato passeia por cima dos livros na mesa, como se tivesse saído de Old Possum's Book of Practical Cats, de T. S. Eliot. A colecção daquela família assemelha-se a um jardim inglês, multicolor, imprevisível, hospitaleiro. Cada livro parece falar com eles uma linguagem idiossincrática, como se existisse um idioma para o coração. Aquela família de livrariófilos para ser feliz, tem de ter a sua dose diária de literatura, isto numa terra em que a norma é não ler, os livros montes de poeira, o leitor uma espécie de aberração e paradoxalmente um Presidente da República que nada entende de letras mas é doutor honoris causa em literatura. É com eles, os livros, que tencionam envelhecer.
Mas as pessoas inteligentes perdem-se por causa das coisas mais estúpidas e ultimamente passaram de dueto a duelo:
- E os livros?
- Partes iguais, parece-me sensato.
- Como sensato? Eu tenho direito a escolher e sabes bem porquê.
Agustina, com o seu mau humor capaz de aterrorizar os incautos, começou a tirar os livros das estantes e de sacos como se coelhos fossem. Os que ela queria na sala, os que podiam ficar com ele na biblioteca.
- Espera aí! - gritou Vladimir, bufando de indignação. - Os clássicos são meus!
- Não entendo porquê – reagiu ela, colérica e soberba na sua superioridade intelectual. - Coloquei toda a obra do António Lobo Antunes na tua pilha, na biblioteca.
- Eu disse clássicos, quero lá saber do Lobo Antunes? Nunca apreciei a sua prosa escarpada.
- Muito bem! Grande confidência. Tu nunca gostaste do António Lobo Antunes? Tu que dizes que ele é o homem que sabe substantivar os adjectivos, como nenhum outro escritor? Quer dizer que tudo o que afirmas é um embuste?
O diapasão anímico da conversa subia vertiginosamente na contagem dos megahertz emocionais. O que queria ela dizer com embuste: os dois nus refastelados na cama, enquanto ele lhe lia fragmentos de Não entres tão depressa nessa noite escura. O quarto à meia-luz, os dois confundidos um no outro. Entre corpos toda a literatura era deles.
- Não mudes de assunto. Tchekhov, Gogol, Turgueniev, Jane Austen, Dickens, Emile Brontee, Stendhal, Flaubert são meus, diz de rajada. Ah e os poetas também.
- Não foste tu que ainda há segundos reclamaste partes iguais?
- Podes ficar com o António Lobo Antunes completo.
- Eu abomino o Lobo Antunes! Sempre detestei aquelas personagens sem espessura, nem carne, nem sangue, tal como tu, curiosamente.
- Irra! Então a dissimulada és tu, disse Vladimir, já não conseguindo manter aquela certa elegância, mesmo em condições adversas, como era conhecido pelos mais próximos.
- Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer. Eu odeio quando tu finges saber discutir literatura; tu um charlatão literário, sempre com considerações teóricas, em extravagantes demonstrações de erudição, armado em bibliófilo dizendo que Eça é o teu “maestro” e o teu “autor”. E proclamas ad nauseam o teu amor pelos livros apenas para que os outros saibam como és excepcional e muito mais culto e refinado do que todos os restantes. E mais...
- Cautela com o que dizes...
- Coisa pouca. Odeio quando me tocas de manhã. Abomino!
- Sim? E os tremores que sentes são encenação barata?
- Exactamente! Queres a verdade? São! Não sei de onde vocês machos de trazer por casa concluíram que mulher gosta de sexo à laia de Henry Miller, como se estivéssemos sempre de perna aberta para todas as vossas fantasias ridículas!
Naquela noite pouco terna, em território gelado sem um sobressalto protector, decidiram protelar a partilha dos livros antes de se agredirem. Ele húmido de lágrimas foi até à varanda fumar para se afastar daquela Madame Bovary de bolso, que adora dar a impressão de uma daquelas pomposas amantes de livros que dizem ter descoberto tal e tal volume raro num alfarrabista nas ruas secundárias de Bratislava. Ela com precisão cirúrgica e a soprar restos de fúria foi conferir os fundos das estantes largas para ter a certeza de que não se estava a esquecer de nada. Foi quando deparou com o Palazzo Della Torre.
Mostrou o vinho ao marido.
- Recordas-te?
- Deuses. Onde estava essa maravilha?
- Na estante do quartinho onde estão os policiais. Lembro-me, tão só, que tínhamos jurado que só o abriríamos numa certa data... mas qual e porquê?
- Não faço a mínima ideia.
No exacto momento em que a vida se encaixota e já cansados das provações homéricas de uma relação de mil e uma noites veio-lhes à memória Eugénio de Andrade:
(…) O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas.
Luís Galego
Imagem: Lissue Lumineuse, Vieira da Silva (n. em Lisboa 13 Jun 1908 -m. Paris 6 Mar. 1992)
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