sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

0

o passado é inútil como um trapo... - Luís Galego


Não entendem nada de vinhos mas tinham guardado um ícone: Palazzo Della Torre, para abrir numa data específica. Que dia tão especial será esse? Nenhum dos dois se recorda. E, não entendendo nada de vinhos, quem sabe se aquele vinho envelhecido ainda se mantinha em boas condições? Chegou o momento da separação, dia de má conjugação astral mas oportunidade para autopsiar um relacionamento. Impunha-se a questão: o que pertence a quem? Pinturas, caixas de papéis, roupas, móveis, aglomerações de jornais e revistas alemãs e francesas, norte e sul americanas, guias e mapas, catálogos, álbuns de fotografias, centenas de artigos literários e diários, discos, whisky irlandês e objectos não identificados. Mas os livros eram a sua bússola e riqueza e a sua ruína, o seu património de paperback e hardcover, o enxoval e o dote, os seus momentos de existência, a impressão de estar em posse de um outro mundo. Viciados em novelas, livrarias e estantes, têm um seguro multi-riscos sobre o recheio da casa por causa do espólio literário. Como se alguém estivesse interessado em roubar livros, ainda que belas edições antigas. O medo que um cataclismo danifique as colecções de Dostoevsky ou de Tolstoy, a Bíblia e as obras de Shakespeare e Montaigne, o Middlemarch, de George Eliot, os Thibault, de Martin du Gard e mais do que qualquer outro, as páginas amarelecidas de A Morte de Ivan Ilicht, de Tolstoi, enchia-os de pânico em viagem. Maravilhas da literatura oriental obstruem o apartamento, dramaturgos russos escalam pelas paredes, intelectuais franceses instalam-se na casa de banho, na cozinha, nos quartos, biógrafos anglo-saxónicos escorrem pelo soalho, números antigos da Magazine Littéraire murmuram no sótão, diversas tendências literárias entornam-se, tropeçam, devaneiam pelos corredores. Amontoamentos de ensaios ibero-americanos em equilíbrio precário que derrocam a las cinco de la tarde, para desespero da empregada romena, curiosamente bibliotecária no seu país e especialista em estudos sobre a Escola Latina na Transilvânia. Prateleiras bem apetrechadas de literatura do terceiro mundo mas que tresandam a romances grandiosos, históricos e políticos. Edições em língua árabe, obras de divulgação cientifica, ficções e teses académicas, short stories e antologias, scripts de filmes, livros de design, literatura de viagens, brochuras em catalão e castelhano, dicionários, orações de sapiência, longos salmos de amorosas inconfidências, nacos de prosa e prosódia, paixões e obsessões de gays e lésbicas, autores indiscretos que a espreitar por um postigo os ajudam a compreender o mundo; adoráveis misturas de livros de obstetrícia e de clássicos, comida vegetariana japonesa e livros sobre borboletas, insectos e repteis com Mario Vargas Llosa, doçaria e cartografia com história cultural e das mentalidades e também livros ainda adormecidos, por abrir; sim, já chegaram a comprar livros a peso em Veneza, como se se tratassem de frutos exóticos ou especiarias recém-chegadas do Oriente. Os livros, um universo que estimam mais do que a uma pessoa de família.

Os filhos são criados mais com livros e enciclopédias do que com brinquedos; a miúda ordena os seus livros com precisão militar e nada a indispõe mais do que saber que o irmão lhes toca. O acervo do rapaz cresce periclitante e de mãos dadas com as suas borbulhas, caótico, sem regra e prospera com a espontaneidade dos lírios do campo e até o gato passeia por cima dos livros na mesa, como se tivesse saído de Old Possum's Book of Practical Cats, de T. S. Eliot. A colecção daquela família assemelha-se a um jardim inglês, multicolor, imprevisível, hospitaleiro. Cada livro parece falar com eles uma linguagem idiossincrática, como se existisse um idioma para o coração. Aquela família de livrariófilos para ser feliz, tem de ter a sua dose diária de literatura, isto numa terra em que a norma é não ler, os livros montes de poeira, o leitor uma espécie de aberração e paradoxalmente um Presidente da República que nada entende de letras mas é doutor honoris causa em literatura. É com eles, os livros, que tencionam envelhecer.

Mas as pessoas inteligentes perdem-se por causa das coisas mais estúpidas e ultimamente passaram de dueto a duelo:

- E os livros?

- Partes iguais, parece-me sensato.

- Como sensato? Eu tenho direito a escolher e sabes bem porquê.

Agustina, com o seu mau humor capaz de aterrorizar os incautos, começou a tirar os livros das estantes e de sacos como se coelhos fossem. Os que ela queria na sala, os que podiam ficar com ele na biblioteca.

- Espera aí! - gritou Vladimir, bufando de indignação. - Os clássicos são meus!

- Não entendo porquê – reagiu ela, colérica e soberba na sua superioridade intelectual. - Coloquei toda a obra do António Lobo Antunes na tua pilha, na biblioteca.

- Eu disse clássicos, quero lá saber do Lobo Antunes? Nunca apreciei a sua prosa escarpada.

- Muito bem! Grande confidência. Tu nunca gostaste do António Lobo Antunes? Tu que dizes que ele é o homem que sabe substantivar os adjectivos, como nenhum outro escritor? Quer dizer que tudo o que afirmas é um embuste?

O diapasão anímico da conversa subia vertiginosamente na contagem dos megahertz emocionais. O que queria ela dizer com embuste: os dois nus refastelados na cama, enquanto ele lhe lia fragmentos de Não entres tão depressa nessa noite escura. O quarto à meia-luz, os dois confundidos um no outro. Entre corpos toda a literatura era deles.

- Não mudes de assunto. Tchekhov, Gogol, Turgueniev, Jane Austen, Dickens, Emile Brontee, Stendhal, Flaubert são meus, diz de rajada. Ah e os poetas também.

- Não foste tu que ainda há segundos reclamaste partes iguais?

- Podes ficar com o António Lobo Antunes completo.

- Eu abomino o Lobo Antunes! Sempre detestei aquelas personagens sem espessura, nem carne, nem sangue, tal como tu, curiosamente.

- Irra! Então a dissimulada és tu, disse Vladimir, já não conseguindo manter aquela certa elegância, mesmo em condições adversas, como era conhecido pelos mais próximos.

- Escuta, escuta: tenho ainda uma coisa a dizer. Eu odeio quando tu finges saber discutir literatura; tu um charlatão literário, sempre com considerações teóricas, em extravagantes demonstrações de erudição, armado em bibliófilo dizendo que Eça é o teu “maestro” e o teu “autor”. E proclamas ad nauseam o teu amor pelos livros apenas para que os outros saibam como és excepcional e muito mais culto e refinado do que todos os restantes. E mais...

- Cautela com o que dizes...

- Coisa pouca. Odeio quando me tocas de manhã. Abomino!

- Sim? E os tremores que sentes são encenação barata?

- Exactamente! Queres a verdade? São! Não sei de onde vocês machos de trazer por casa concluíram que mulher gosta de sexo à laia de Henry Miller, como se estivéssemos sempre de perna aberta para todas as vossas fantasias ridículas!

Naquela noite pouco terna, em território gelado sem um sobressalto protector, decidiram protelar a partilha dos livros antes de se agredirem. Ele húmido de lágrimas foi até à varanda fumar para se afastar daquela Madame Bovary de bolso, que adora dar a impressão de uma daquelas pomposas amantes de livros que dizem ter descoberto tal e tal volume raro num alfarrabista nas ruas secundárias de Bratislava. Ela com precisão cirúrgica e a soprar restos de fúria foi conferir os fundos das estantes largas para ter a certeza de que não se estava a esquecer de nada. Foi quando deparou com o Palazzo Della Torre.

Mostrou o vinho ao marido.

- Recordas-te?

- Deuses. Onde estava essa maravilha?

- Na estante do quartinho onde estão os policiais. Lembro-me, tão só, que tínhamos jurado que só o abriríamos numa certa data... mas qual e porquê?

- Não faço a mínima ideia.

No exacto momento em que a vida se encaixota e já cansados das provações homéricas de uma relação de mil e uma noites veio-lhes à memória Eugénio de Andrade:

(…) O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas.


Luís Galego




Imagem: Lissue Lumineuse, Vieira da Silva (n. em Lisboa 13 Jun 1908 -m. Paris 6 Mar. 1992)

Seja o primeiro a comentar: