terça-feira, 11 de janeiro de 2011

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BENEDITA


Se pudesse entender, não escreveria. Estava cansado, um bocado cansado mesmo, embora contente. Contente porque depois de três meses eu poderia me encontrar outra vez com Benedita, que é boa e eu amo. Contente por poder ficar longe de toda aquela correria do banco, daquele dinheiro todo, daqueles clientes todos, de todas aquelas gravatas coloridas e daqueles ternos bem e mal talhados. Estava feliz porque Benedita escrevia poesia e me esperava e era sexta-feira e o trem... o trem estava por vir, e me levar pro oeste, onde ela, Benedita, me esperava, usando seu vestido vermelho com elefantes indianos desenhados e a bíblia aberta sobre o criado-mudo.


Certo é que ainda sobrava tempo pra tomar um café e fumar um cigarro olhando os gêmeos colombianos tocarem suas flautas de bambu enquanto o trem não vinha. Enfim era tempo de sorrir, eu estava sem calor, de banho recém tomado, imaginando Benedita nua com seus olhos brilhando no meio do rosto alegre, o corpo deixando o vestido sair, as mãos prontas pra serem minhas. E pensar que em breve eu seria senhor de tudo aquilo! E pensar que em breve eu não estaria mais na estação vermelha esperando o trem, em breve São Paulo e suas neuroses seriam passado e eu beberia algumas cervejas bem geladas depois do amor.
Eram sete e trinta e sete da noite, quando olhei no relógio da estação e decidi que era hora de abandonar o café e embarcar. Por farra resolvi pular a catraca, justamente na frente do guarda pra ver qual seria sua reação. Embora eu pulasse devagar, ele, o guarda, não esboçou qualquer reação. Fez como se não me tivesse visto. Melhor pra mim que poderia guardar o dinheiro pra mais tarde.


O trem não demorou a encostar. Estranhei-o, porque era extremamente velho. Como é que uma coisa naquela situação poderia suportar atravessar o estado? De qualquer maneira eles, os chefes da estrada de ferro, deveriam saber o que estavam fazendo. Não colocariam pro serviço um veículo que não poderia fazê-lo.


Assim que as portas se abriram eu entrei. Já havia algumas pessoas, poucas, dentro do vagão. Achei que eram, principalmente por suas aparências, foragidas de algum circo. Havia um palhaço sentado no banco em frente ao meu que fazia crochê com lã vermelha, não consegui distinguir o que ele tecia. Um pouco mais adiante, sentados no mesmo banco, conversavam uma mulher barbada e um homem de terno negro e cartola, que eu deduzi ser o mago. No banco atrás do meu, dormia um senhor de uns noventa anos com roupa de trapezista.


Sentei. Sorri. E decidi que era hora de tomar o meu comprimido azul.


Lá fora a noite aumentava cada vez mais. E, aos poucos, uma névoa clara quase como nuvem envolvia o trem. Senti meu corpo amolecer. Estava relaxado da cabeça à ponta dos pés. O mágico acendeu seu cachimbo. Tinha um cheiro bom a fumaça que o cachimbo dele, do mágico, emitia.
O trem ganhou velocidade. Avançava na noite feito um tigre. Não sei se adormeci, ou se ainda estava acordado. Talvez fosse sonho, talvez meus olhos estivessem realmente vendo aquele rio lindo correndo ao lado dos trilhos, cercado de girassóis azuis, e no qual os peixes eram todos de cores exóticas. Ao longe havia montanhas em cujos cumes um fogo intenso crepitava. Foi estranho que nem eu, nem ninguém no trem tivemos a menor reação, quando aquela cruz enorme surgiu entre as montanhas, tingindo tudo ao seu redor de fogo, feito o sol quando se põe. Mais estranho ainda foi ver aquele pano roxo enorme descer sobre a cruz, encobrindo tudo, inclusive as montanhas... Talvez eu estivesse mesmo sonhando.


Sei que quando dei por mim novamente os alto-falantes do trem anunciavam que dentro de dez minutos chegaríamos à estação onde eu deveria descer. Notei que os outros passageiros não estavam mais no trem. Fiquei feliz ao pensar que em vinte minutos, no máximo, eu teria Benedita só pra mim.


Assim que o trem parou, pulei com minha mochila, entretanto estranhei a estação, não parecia ser mais a mesma. O mofo havia tomado conta de todas as paredes, que em muitos lugares estava destruída ou deixava os tijolos à mostra. Havia um cheiro azedo no ar. Pensei em tomar um café, uma cerveja, ou qualquer coisa assim, mas o telhado da estação, onde ficava o bar, havia desabado. Saí para a rua e a cidade inteira não estava em melhor estado. Era absurdo que as coisas tivessem mudado tanto em apenas três meses. O cheiro de carne podre empesteava o ar.


Nas ruas não havia mais asfalto, apenas buracos, buracos enormes. Resolvi caminhar. Viva alma não encontrei em toda a cidade, apenas aranhas, teias de aranhas e o zumbir das moscas, alimento. Pelo menos as ruas ainda existiam, embora as casas estivessem destruídas e as pessoas estivessem longe, invisíveis.


Dobrei uma esquina, depois a outra, segui em frente...


Então, mesmo com medo de olhar, avistei a casa. Como a estação e todo o resto da cidade, não era mais que um emaranhado de ruínas, a casa. Continuei ... A porta estava escancarada. Em algumas partes da parede os tijolos também apareciam, porque o reboco havia caído. Onde os tijolos ainda não apareciam, o mofo cobria tudo. Um mofo negro, áspero.


Entrei devagar, sentindo o assoalho velho ranger sob meus pés. Ouvi vozes baixas que vinham do quarto onde Benedita dormia. Fui até lá. Meu coração disparou. A porta do quarto estava fechada. Pensei em bater, mas desisti e acabei entrando de uma vez.


Havia uma velhinha deitada na cama, segurando na mão de uma menina de uns doze anos. Conversavam. Não pude entender o que diziam. Aproximei-me da cama. A menina não se moveu um milímetro sequer. A velhinha, entretanto, virou-se pra mim e sorriu. Apesar de velho, era um rosto bonito o dela, e os olhos azuis, embora acinzentados pelo tempo, ainda brilhavam. Eu conhecia aqueles olhos. Ela disse meu nome calma, como se me conhecesse de longa data. Percebi pelos olhos, o sorriso, a voz que aquela senhora ali, deitada, de alguma forma, era Benedita, a minha Benedita. Havia uma cadeira encostada na parede. Tudo o que pude fazer foi me sentar e segurar a outra mão dela.

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