sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

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THE CHILL - Milena Martins



Mesmo que depois venham as árvores feridas de corações desconhecidos, ainda que cheguem os feriados enforcados, mesmo que depois venham os livros nunca lidos, os filmes dublados, ainda que a rua inunde à altura do parapeito, ainda que os letreiros se apaguem antes de chegar amanhã, mesmo que depois do escuro depois do vento me espere a sanidade, ainda que os muros sejam baixos e as janelas estejam abertas apesar de a vista não ser pro mar, mesmo que os sinais vermelhos não retenham a minha mudez, hoje eu não vou ligar o gás, eu não vou pular do abismo, eu não vou mastigar trinta vezes a mesma porção de silêncio. Abrirei os lábios. E deixarei sair o horror.
As fronhas estão limpas envolvendo os travesseiros, as blusas estão brancas secando ao sol, o chão está brilhante à luz falsa da lâmpada, as toalhas estão dispostas à espera dos corpos, a tevê está desligada, o som está mudo, a comida está pronta. A casa me inutiliza na sua gigantesca autossuficiência. A incompletude é toda minha.
Deve ser o meu modo de dizer eu te amo, o meu modo de gritar de dor, de gemer de gozo. Deve ser o meu modo de escalar as paredes do poço. Deve ser o meu modo de lavar as mãos cantarolando Wagner, de assoprar as velas antes de untar o tabuleiro. Deve ser o meu modo de ser do meu modo o que me faz apagar as luzes pra mergulhar paciente na sua ausência.
Nem se eu cantar mais um hino em latim, nem se eu compuser mais uma ária ao acaso, nem se eu escrever mais um poema à água desperdiçada no lavar dos pratos, no banhar dos corpos, nem se eu insistir no erro do tédio ou no erro ainda maior da euforia você ocupará a cabeceira deste mesa hoje à noite.
Porque sempre há o dia em que eu acordo só. Sempre há a noite em que os passos ecoam pela metade. Sempre há a hora em que bater à porta é inútil, em pedir um beijo é devaneio, em que travar conversa é alucinação. Porque chega sempre o tempo em que as paredes não envolvem mais que um corpo, em que os lençóis não embrulham mais que uma pele, em que os tapetes não sustentam mais que um andar, em que você está demasiado longe pra se sentar à esta mesa e ocupar o seu lugar.
E se chamar não adianta, eu pinto os lábios. E se chorar não adianta, eu pinto os olhos. E se correr não adianta, eu pinto as unhas. Pra não morrer, vou beber uísque, já que a ausência se esforça por me envenenar. Lavarei o rosto quando você voltar. E expurgo então as sobras contaminadas.





Imagem: KathyBreenMD






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