Enquanto o mundo dorme penso no que daria para ouvir as suas doutas exposições, para apreciar os seus olhos enigmáticos e as mãos esguias, aqueles cabelos escuros e um rosto de Modigliani, havia naquela mulher de quase quarenta anos algo de essencialmente humano! Universidade, pais velhotes, sobrinhos, alunos, sebentas, carro caindo aos pedaços, e tudo o mais que faça parte de uma mulher investigadora e solteira a roçar os quarenta. Qual era então o enigma do seu encanto, se tudo nela parecia banal? Porque é que toda a gente a apreciava tanto, como se de um verdadeiro poema épico se tratasse? Que fazia para ser tão amada? Talvez porque era imensa e porque possuía um brilhante poder de observação. Com ela aprendi muito sobre história, sobre filosofia, sobre linguística e a reunir estudos gregos e latinos com emoção, um insaciável desejo de saber, a descoberta da boa leitura e o veneno da escrita; fazia-me sentir desinquieto no puro espaço dos cinco sentidos durante as suas aulas ou quando a encontrava no Centro de Estudos Clássicos (onde passava o tempo a estudar e a organizar volumes encadernados de línguas, literaturas e culturas da antiguidade clássica). Geria o tempo, como se este fosse elástico, um facho inextinguível, uma intensa alegria de viver, os dias para ela eram longos e tinham cem anos. Contou-me que quando saia da Faculdade ainda ia para Carcavelos dar aulas de Latim medieval e carinho a um grupo de juristas alemães aposentados, uma espécie de voluntariado cultural. Fiquei simultaneamente feliz e tenso como a pele de um tambor quando me deu a notícia de ter conseguido uma bolsa no departamento de Greek and Latin Studies, na Saint Louis University. Foi há mil anos mas tenho uma recordação extraordinariamente presente da tarde em que me despedi dela. Imaginem só, alguém com possibilidade de apenas investigar o seu tema de eleição, a sua paixão, o caminho de estrelas que traçou! Deixou-me uma pilha de livros, alguns dos seus rascunhos sobre vasos gregos, um conjunto de poemas boémios que nunca ousou editar e a minha alma aberta como uma ferida. Quando a nossa correspondência de certo modo definhou, acabando por ser suspensa, e a minha vida abalroou de novo na impertinente companhia de analfabetos de erudições, teimava em preocupar-se comigo, perguntava a toda a gente por mim, tentando salvar-me de um destino cego, dos pântanos da vida de um recem assistente universitário. Partiu num domingo de céu invernal, as emoções inundavam com persistência os rostos de alguns que foram despedir-se dela; à porta de embarque, mãos ansiosas, ofereci-lhe uma orquídea; enternecida, deixou cair lágrimas daqueles olhos com tons de pedra rara que desaguaram no meu coração. Restou uma doce carícia e o meu olhar envelheceu.
Ter-me-á ocorrido que seria este o derradeiro afago? Obviamente que sim. Foi rigorosamente o que pensei: sim, estou a senti-la pela última vez. Na verdade, é o que me acontece sempre com as pessoas especiais. A minha existência é um ininterrupto adeus a extraordinárias criaturas que muitas vezes não percebem a minha postura reservada, sincera, arrebatada.
Luís Galego
Imagem: enviada pelo autor
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