- o fantasma
Uma noite quente. Daquelas em que a gente não se agüenta
em casa, o corpo pede rua, a alma clama altos vôos.
Na rua, então, dentro da noite quente, corpo e alma de Filó
caminham. O bafo do calor lambe a sua nuca, molha a sua camisa.
Mas ele está feliz – e é bom estar feliz dentro da noite quente.
A noite, no entanto, avança para o dia. No momento em que
Filó consulta o relógio os ponteiros indicam meia-noite. Hora de
voltar.
Dentro da noite quente, Filó, ainda feliz, retorna pra casa.
Mas dizem as lendas antigas que à meia-noite os santos e os
demônios abrem as portas do céu e do inferno e liberam os
fantasmas para um passeio na terra. Filó conhece as lendas, pois já
não é tão jovem – nem tão velho que possa ser considerado antigo.
Tudo besteira, é o que ele pensa, caminhando dentro da noite
quente.
Quando avista um vulto a distância, Filó se dá conta da
desertidão da noite. É tarde, ele pensa, de olho no vulto que
cresce, que se aproxima. Um fantasma? Filó não sabe, mas seus
joelhos já tremem. As lendas, agora, não lhe parecem besteira. E
o que são as lendas, afinal? Não são casos inspirados no real? É um
fantasma sim, só pode ser!
Filó, apavorado, atravessa a rua e vai para a calçada do outro
lado. O vulto, que começa a ganhar os contornos de um
mascarado, o acompanha. Os olhos brilhando no escuro.
No momento em que os dois enfim se cruzam, Filó, trêmulo,
pergunta:
- Você é um fantasma?
- Que fantasma, mano! – responde prontamente o vulto, o
mascarado. – Eu sou ladrão, pô!
- Graças a Deus! – exclama Filó, aliviado, dentro da noite
quente que avança para o dia.
- jogo de bicho
Filó sonha com uma caverna. Na porta da caverna uma ponta
de rabo verde. E na ponta do rabo verde um dragão verde com
asinhas azuis.
Na manhã seguinte, Filó corre até a esquina e conta o sonho
ao bicheiro. E manda apostar cincão no dragão. O homem ri,
gargalha de chorar e recusa a aposta.
- Porque o dragão do seu sonho já bateu asas e vuô – é o que
ele diz, rindo rindo.
- filósoficas XVIII
- numa garrafa
de areia pintada
areia
e a vida
toda engarrafada
- o baú
Num velho baú Filó guarda relógios e despertadores e
calendários.
Dia após dia.
Pralguma necessidade necessária.
Quando suas costas doem, seus joelhos emperram, seus
cabelos se pintam de branco, ele abre o baú e resgata o que
guardou. E atrasa os relógios, silencia os despertadores, ignora
solenemente os calendários.
Na rua, quando o felicitam por parecer mais jovem, Filó
enrubesce feito uma criança travessa.
- a festa
Naquela rua, que fica perto daquela outra na esquina da
avenida, Filó se depara com uma casa em festa.
Dançando e sorrindo, pulando e rodopiando Filó se aproxima.
E pergunta à mulher vestida de luz:
- Que festa é essa?
- Não é festa – responde sorrindo a mulher. – É velório.
Filó se detém. Guarda os sorrisos e a dança no bolso, põe na
cara uma cara de luto e se desculpa pelo comportamento.
- Não precisa se desculpar – diz a mulher. – Porque o defunto
se chamava Desemprego.
Tirando do bolso os sorrisos e a dança, Filó pula e rodopia
abraçado à mulher vestida de luz. Lá do alto, uma estrelinha
solitária bate palmas e sorri.
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