quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

1

O CONTADOR DE SORRISOS



A chuva caiu imensa no final da tarde e, rapidamente, inaugurou a noite, sem lua, sem estrelas. Ruas inteiras foram alagadas provocando uma lenta procissão de carros. As calçadas cobriram-se com um tapete de folhas arrancadas das arvores pela impetuosidade do vento. A força das águas descidas das nuvens, correndo no meio-fio, formava pequenos rios, ansiosos, buscando seus caminhos na cidade. O embaraço no trânsito crescia a cada segundo fazendo parecer que o tempo tinha desistido de seguir seu rumo. Era um daqueles momentos da vida que nada se pode fazer, a não ser exercitar a paciência, a calma, a serenidade.

Desliguei o carro. Recostei a cabeça e, pensando em nada, dei um descanso para a minha mente, para o coração, para a alma. Nesse exato momento, como se tivesse saído da bruma do tempo, um homem idoso, de barba rala e nevada pela idade, com as marcas dos dias desenhando profundos riscos na pele do seu rosto, parcialmente encoberto por uma velha sobrinha vermelha, vendia, com uma voz calma, serena, sem angústias, sem pressa, beijos de moça em pequenas embalagens de plástico. Antes da minha resposta, insistiu, poeticamente. Compre, senhor, são feitos pelas doces mãos da minha mulher e com o açúcar mais doce do mundo.

Olhei para aquele homem de olhar cansado pela idade avançada, com as roupas molhadas pela chuva, pelas lágrimas do tempo, e fiquei pensando como a vida para poucos pode ser amena, feliz, suave, generosa e, para muitos, traiçoeira, rigorosa, madrasta. Tantos dentro de seus carros, com roupas secas, com casas confortáveis para descansar o corpo e aquele homem, ao alcance das minhas palavras, das minhas mãos, da minha alma, era obrigado a trabalhar enfrentando os mistérios da noite.

Talvez nem soubesse, pensei eu, num infantil rasgo de ingenuidade, que antes de vender beijos de moça, vendia uma lição de coragem, de humildade, de fé, de serenidade, de esperança, de resignação, pouco se importando com o rigor da chuva, do vento, da idade.

Saboreando os pedacinhos de sonhos que comprei e, ainda, encantado com a frase que ele usara para vendê-los, dei conta da estúpida insensatez do lado material do meu espírito. Como aquele homem poderia ser infeliz se vendia doces colocando tanta docilidade em suas palavras? Talvez fosse um poeta das ruas. Desses que cumprimentam a lua, se despedem das estrelas...

Fascinado, me aventurei a saber quanto vendia por dia. Meu amigo, respondeu - sinceramente eu não sei. Eu não conto dinheiro. Eu só conto os sorrisos dela nos cinqüenta e três anos de amor que estamos juntos, essa é a receita para nossa felicidade.

Fiquei calado. Ele agradeceu e seguiu seu caminho, tentando encantar outras almas, outros corações sensíveis.

Dentro do carro fiquei imaginando como a vida pode ser simples. Como o amor tem o poder insuperável de apagar as feridas hospedadas no espirito, de desviar os maus ventos que trazem tristezas. De fazer das saudades recordações felizes, inesquecíveis, quase confortáveis, sem angústias, sem o dissabor do infortúnio.

Da simplicidade de um coração que nunca permitiu abrir suas janelas para o desamor, recebi, feliz, uma doce lição de amor, ficando na certeza que no palco da vida, de um teatro sem platéia, sem aplausos, pródigo em exibir peças de tragédias, dramas e dores, o bom mesmo é o encanto, a alegria, a felicidade de poder contar diariamente com a ternura e os sorrisos da mulher amada. Afinal, quem de nós pode dimensionar o tamanho da felicidade alheia?

1 Comentário

Fátima Mota

Linda crônica, muito bem escrita.Também sou uma amante da lua e contadora de estrelas e sinceramente, adorei ler-te.