Conheci Clarice aos 16. Leitura obrigatória de escola e, como tal, inundada de pressão e impaciência. Eu, que desde cedo demonstrava uma incapacidade crônica de ler algo quando obrigada, não li. Passei do prazo diversas vezes, sempre empurrando para amanhã. Acabei lendo, no último instante, apenas o conto que cabia ao meu grupo. O livro era Laços de Família. Depois, na continuação do mesmo trabalho, tivemos uma prova oral que me rendeu insônias e crises de ansiedade aguda. Para me precaver, decorei a vida inteira daquela mulher até então (ou sempre?) desconhecida. Nenhuma pergunta sobre ela me foi feita e, no entanto, não esqueci nunca.
Passado o trauma, o interesse despertado pelo conto me sugou para os outros do mesmo livro. Para os outros de outros livros. A legião estrangeira, Felicidade clandestina, Uma aprendizagem... Feito uma enxurrada, eu fui inundada de Clarice Lispector. Lendo com uma pressa que talvez não se justificasse, mas sempre imediata, sempre ofegante, engolindo aquelas letras até que me saciasse. Pouco depois recomeçava o ciclo. Eu tinha 16. Ainda ruiva (revolta involuntária?), incerta, excessiva. Na época, também quebrada. Eu era para todos os lados e me doía comigo mesma sem conseguir dar aos outros a compreensão do meu incômodo. Clarice me explicava. Embora eu própria não entendesse. Lendo suas linhas, me sentia um desses macacos colocados em frente a um espelho. Reconhecem a própria imagem, se encantam, se inquietam, querem entender mais e: não entendem. O mecanismo do espelho ou o porquê do reflexo é algo que a compreensão dele não alcança. Só o que lhe resta é a percepção da semelhança – e as reações que ela desencadeia.
A minha reação, embora oscilasse, pendia a qualquer coisa entre um amor e um fascínio. Pega no susto, só o que pensava era: mas nós somos a mesma, meu deus. E Clarice se tornava meu duplo, minha mãe, minha irmã, minha filha, minha mulher. Com um apego discreto, e certa dose de desespero, eu a tomava como minha: meu segredo inviolável. Afinal, era certo que a ligação de nossas almas era raridade inédita, um mistério sublime que só pertencia a nós duas. Eu carregava um livro seu na bolsa mesmo quando sabia que não teria tempo para ler. Pois só o peso, aquele peso sutil mas sensível, já me garantia o conforto da companhia. Eu já não estava sozinha. E não estaria nunca, estava convicta: Clarice me abraçava em silêncio.
Foi só aos 18 que meu encanto deu mostras de seu desmoronamento. Ao conhecer outros leitores, ao ouvir suas histórias e impressões, todos tão certos de uma compreensão inimaginável aos ouvidos alheios, eu percebi que não era tão única. Meu amor não era tão raro. Minha ligação de almas, não tão inédita. Segredo violado, eu ocupei o lugar de mulher traída. Pois sim, era traição o que me esfarelava a certeza. Então há outros com quem divides teus mistérios, Clarice? Não somos só nós, não és só minha, já não somos mais a mesma, Clarice? E as vozes alheias que insistiam em falar sobre ela com o mesmo apego, a mesma intimidade, apenas me garantiam a verdade azeda. “Escrevi livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe.”, ela dissera um dia. E eu ouvi depois, quando era tarde, e eu já a amava como se fosse bem de perto.
Meu fascínio partido esfriou o amor (ou meu amor partido esfriou o fascínio?). Por tempos não consegui ler palavra alguma daquela que me doía por não me pertencer. Era um egoísmo, um egoísmo pleno; e bobo. Mas não me deixava mais ser livre para afundar nas páginas dela. Só depois foi se dissolvendo esse rancor ciumento, quando eu de ruiva passei a ser morena e depois loira e depois quantas mil cores, procurando um rosto que fosse verdadeiramente meu. Em variadas faces fui sendo lapidada e me tornando mais pessoa, mais inteira. Os excessos não cessaram. Mas, ao invés de me podar, canalizei as urgências e deixei que jorrassem em papel branco. Meu amor é mais plácido. Não queima, não agride. Aprendi a dividi-lo com o mundo, sem a loucura anti-solidão. Se antes lia Clarice feito uma criança que tapa os olhos diante de um filme forte mas teima em espiar entre os dedos, agora até ouso enxergá-la a olho nu. Não dói tanto, embora haja, invariavelmente, as pontadas e fagulhas aqui e ali. Ler Clarice é um susto. Um susto do qual não se sai o mesmo nunca.
Passado o trauma, o interesse despertado pelo conto me sugou para os outros do mesmo livro. Para os outros de outros livros. A legião estrangeira, Felicidade clandestina, Uma aprendizagem... Feito uma enxurrada, eu fui inundada de Clarice Lispector. Lendo com uma pressa que talvez não se justificasse, mas sempre imediata, sempre ofegante, engolindo aquelas letras até que me saciasse. Pouco depois recomeçava o ciclo. Eu tinha 16. Ainda ruiva (revolta involuntária?), incerta, excessiva. Na época, também quebrada. Eu era para todos os lados e me doía comigo mesma sem conseguir dar aos outros a compreensão do meu incômodo. Clarice me explicava. Embora eu própria não entendesse. Lendo suas linhas, me sentia um desses macacos colocados em frente a um espelho. Reconhecem a própria imagem, se encantam, se inquietam, querem entender mais e: não entendem. O mecanismo do espelho ou o porquê do reflexo é algo que a compreensão dele não alcança. Só o que lhe resta é a percepção da semelhança – e as reações que ela desencadeia.
A minha reação, embora oscilasse, pendia a qualquer coisa entre um amor e um fascínio. Pega no susto, só o que pensava era: mas nós somos a mesma, meu deus. E Clarice se tornava meu duplo, minha mãe, minha irmã, minha filha, minha mulher. Com um apego discreto, e certa dose de desespero, eu a tomava como minha: meu segredo inviolável. Afinal, era certo que a ligação de nossas almas era raridade inédita, um mistério sublime que só pertencia a nós duas. Eu carregava um livro seu na bolsa mesmo quando sabia que não teria tempo para ler. Pois só o peso, aquele peso sutil mas sensível, já me garantia o conforto da companhia. Eu já não estava sozinha. E não estaria nunca, estava convicta: Clarice me abraçava em silêncio.
Foi só aos 18 que meu encanto deu mostras de seu desmoronamento. Ao conhecer outros leitores, ao ouvir suas histórias e impressões, todos tão certos de uma compreensão inimaginável aos ouvidos alheios, eu percebi que não era tão única. Meu amor não era tão raro. Minha ligação de almas, não tão inédita. Segredo violado, eu ocupei o lugar de mulher traída. Pois sim, era traição o que me esfarelava a certeza. Então há outros com quem divides teus mistérios, Clarice? Não somos só nós, não és só minha, já não somos mais a mesma, Clarice? E as vozes alheias que insistiam em falar sobre ela com o mesmo apego, a mesma intimidade, apenas me garantiam a verdade azeda. “Escrevi livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe.”, ela dissera um dia. E eu ouvi depois, quando era tarde, e eu já a amava como se fosse bem de perto.
Meu fascínio partido esfriou o amor (ou meu amor partido esfriou o fascínio?). Por tempos não consegui ler palavra alguma daquela que me doía por não me pertencer. Era um egoísmo, um egoísmo pleno; e bobo. Mas não me deixava mais ser livre para afundar nas páginas dela. Só depois foi se dissolvendo esse rancor ciumento, quando eu de ruiva passei a ser morena e depois loira e depois quantas mil cores, procurando um rosto que fosse verdadeiramente meu. Em variadas faces fui sendo lapidada e me tornando mais pessoa, mais inteira. Os excessos não cessaram. Mas, ao invés de me podar, canalizei as urgências e deixei que jorrassem em papel branco. Meu amor é mais plácido. Não queima, não agride. Aprendi a dividi-lo com o mundo, sem a loucura anti-solidão. Se antes lia Clarice feito uma criança que tapa os olhos diante de um filme forte mas teima em espiar entre os dedos, agora até ouso enxergá-la a olho nu. Não dói tanto, embora haja, invariavelmente, as pontadas e fagulhas aqui e ali. Ler Clarice é um susto. Um susto do qual não se sai o mesmo nunca.
Imagem: autor ignorado
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