Era uma vez um reino muito distante, num local e num tempo em que a natureza havia sido especialmente generosa: um reino cercado pelas montanhas, recobertas pelo verde, que crescia exuberante, banhado pelo leito de um rio caudaloso, sinuoso, rico em vida, haviam ainda cachoeiras, aqui e acolá, um vasto lago, de águas calmas, e todos os dias o sol aquecia aquelas paragens com o seu brilho incondicional.
Naquela época haviam muitos reinos - alguns eram pequenos, enquanto outros, verdadeiros impérios. Aquele reino, em especial, não era grande ou poderoso, mas era um bom lugar para se morar. O Rei era justo e comandava um exército de homens bem treinados, que era o suficiente para cuidar de suas fronteiras, sempre que estas eram ameaçadas por hordas de bárbaros.
Numa casinha simples, mas muito asseada, morava um jovem casal. Elza, era a mais bela e formosa das mulheres do reino, de longos cabelos castanhos cacheados, e Fraga, o seu senhor, jovem e bravo guerreiro, de coração puro, fiel ao Rei. Aquele jovem casal era mesmo admirável. Eles eram belos, carinhosos, trabalhadores, e essa harmonia, essa felicidade, parecia mesmo irradiar deles. Como o reino era pequeno e todas as pessoas se conheciam, Elza e Fraga eram mesmo muito queridos e sua companhia, motivo de grande contentamento, das crianças aos mais velhos.
Mas eis senão que, certo dia, o Rei enamorou-se pela bela Elza. Afinal, aquele seu viço e candura também não passavam desapercebidos ante os seus nobres olhos. O Rei tinha intenções de desposá-la e fazer dela a sua Rainha. Seria então Elza, além da mais formosa, a mais importante dama do reino.
Acontece que Elza só tinha olhos para Fraga e, para ele, sua esposa Elza era a razão de seu viver: eram completos um pelo outro; essa completude, essa perfeição envolvia todos aqueles que tinham o privilégio de compartilhar da presença deles. E, por mais que o Rei se exibisse, com os mimos de sua nobreza e poder, não chegava a tocar o coração da bela dama.
No afã de impressionar Elza, uma vez que não podia competir com a beleza singela e a bravura de Fraga, o Rei traçou planos de expandir as fronteiras de seu reino, num misto de demonstração de força e ambição pelo poder.
Aos poucos, novos homens foram amealhados ao contingente do exército, que deu início a uma extenuante série de exercícios e preparação tática para a empreitada. O Rei informou os seus súditos quanto aos seus planos, apesar da reticência dos conselheiros em apoiá-lo.
A apreensão era crescente no reino. Certa noite, Elza expressou ao marido a sua grande preocupação de que algo acontecesse a ele. Mas Fraga demonstrou muita segurança e acalentou-a. De fato, os homens estavam bem preparados, e ele destacava-se dentre os guerreiros, pela sua bravura, sagacidade e fidelidade ao exército do Rei.
As batalhas começaram e, apesar de algumas baixas, o Rei acumulava a riqueza recém subjugada - pertences, metais e pedras preciosas -, assim como as fronteiras do reino iam gradualmente se expandindo. Tempos de guerra eram alternados com tempos de paz, mas os guerreiros estavam em constante exercício: dedicavam-se ora as batalhas, ora aos cuidados com o reparo e a preparação de novos ataques.
Após as conquistas, o Rei promovia grandes celebrações, às quais todo o reino era convidado, e invadiam noites adentro. Era sempre uma fartura de comida, de bebida, muita algazarra, pompa e exagero. Nessas festas o Rei aparecia imponente, geralmente alardeava sobre as riquezas conquistadas. O Rei atraia a atenção de algumas das damas do reino. Entretanto isso não surtia efeito para Elza, sempre exuberante, radiante com o retorno de seu amado após cada batalha. Elza e Fraga dançavam com os seus corpos colados por horas a fio. (Isso deixava o Rei possesso).
Com o sucesso nas batalhas (e o insucesso no amor), a ambição do Rei tornou-se doentia. E essa insensatez, é claro, tinha desdobramentos sobre os seus súditos. Os homens estavam desgastados com o número crescente de combates, e as mulheres sobrecarregadas por terem de cuidar sozinhas da criação, da alimentação e da manutenção de seus lares. Os conselheiros do reino desde o início foram contra; agora, até Fraga, o mais bravo e fiel homem do exército, queixava-se dos desmandos do Rei. Achava que era hora daquela tensão insuportável ceder ante a normalidade, até mesmo os guerreiros sonhavam com dias de tranqüilidade e paz. Era visível que a guerra estava consumindo-os a todos. Elza tinha perdido peso, passava as noites em vigília orando pelo marido nos tempos de batalha, já não trazia em seu semblante o brilho de outrora.
Certa feita, Fraga comandava um grupo de homens após algumas semanas de batalha, quando sofreram uma emboscada. Fraga era um guerreiro incomum, mas encontrava-se exausto, assim como os demais. Por breve instante, sua excepcional concentração vacilou, e ele baixou a guarda. Foi o suficiente para que Fraga fosse ferido de morte: a lança do inimigo atravessou seu tórax, dilacerando o seu peito. Reza a lenda que, naquele exato momento, como que por telepatia (ou sincronicidade), Elza sentiu um aperto em seu coração, uma fraqueza imensa, experiência tão tocante que a fez antecipar a notícia que, em breve, receberia.
Aquela batalha, o Rei perdeu. Foram necessárias, porém, muitas outras baixas em seu exército, mais algumas batalhas, até que o Rei, finalmente, cedesse ante ao seu desejo de poder e sangue. O reino finalmente voltou aos seus dias de paz. Entretanto, nunca mais foi o mesmo. Ele era agora maior, um reino com mais recursos, um maior número de súditos; mas as demandas também eram maiores.
Sobretudo Elza, nunca mais foi a mesma. Era agora uma dama de feições tristes, magérrima, sem a vivacidade de outrora. Apenas não a abandonaram os amigos do casal. É que aquele contentamento que Elza e Fraga emanavam, a cumplicidade, aquela vibração, sintonia, aquilo seria uma lembrança indelével para todos os que compartilharam daquela dádiva e traziam em seu íntimo o signo da dignidade.
Mas parecia mais forte do que ela. Todos os dias Elza ia até as margens do lago, passava longos momentos por lá, a observar o seu semblante refletido no espelho d'água, até que sua visão ficava turva, e a imagem que ela entrevia era a sombra do bravo guerreiro, seu amado Fraga. Então ela soluçava, chorava seco, sem verter uma única lágrima sequer. O Rei também sentiu compaixão pela dor de Elza. Ele bem que guardou um período pelo seu restabelecimento, mas acabou por desposar outra dama, Safira, à época a mais bela e graciosa de seu então poderoso reino.
Muitos anos se passaram, os amigos sempre a reconfortarem-na, ajudando Elza a suportar aquela dor, que não cedia. Certo dia, às margens do lago, ventava forte - coisa que era incomum naquelas cercanias - e isso impediu que os contornos de Fraga se formassem no espelho d'água. Aquilo era mais do que Elza podia suportar; e uma dor lancinante comprimia o seu peito. Ela não tinha forças para soluçar, gritar ou chorar. E então, uma única lágrima rolou pelo seu rosto e precipitou-se sobre a face do lago.
Elza imaginou-se como aquela única gota. Ela percebeu que, ainda que todo o reino velasse a perda de seu amado Fraga, mesmo que todos derramassem as suas lágrimas naquelas águas agitadas pelo vento, a figura do guerreiro jamais formar-se-ia. Mas sua imagem sempre estaria lá, em potência, junto às gotas que formavam aquele vasto lago. Se não fosse assim, o milagre da esperança inabalável que os seus amigos depositavam nela não se justificaria; toda a existência nesse mundo estaria fadada à dor e ao desencanto apenas.
De súbito, compreendeu a grandeza dessa idéia, de que guardamos um pouco do outro dentro de nós mesmos, e que o outro leva consigo um pouco de nós. Que as gerações se sucedem, que os reinos mudam de forma, de lugar, mas a essência está sempre presente: a mesma força que derruba é aquele vento indomável que sopra forte, nos leva adiante, através dos rumos da evolução. Então ela sorriu. E aquele sorriso era de grande ternura e compaixão. Tão grande, que nunca abandonou sua face. Até o último de seus dias.
Naquela época haviam muitos reinos - alguns eram pequenos, enquanto outros, verdadeiros impérios. Aquele reino, em especial, não era grande ou poderoso, mas era um bom lugar para se morar. O Rei era justo e comandava um exército de homens bem treinados, que era o suficiente para cuidar de suas fronteiras, sempre que estas eram ameaçadas por hordas de bárbaros.
Numa casinha simples, mas muito asseada, morava um jovem casal. Elza, era a mais bela e formosa das mulheres do reino, de longos cabelos castanhos cacheados, e Fraga, o seu senhor, jovem e bravo guerreiro, de coração puro, fiel ao Rei. Aquele jovem casal era mesmo admirável. Eles eram belos, carinhosos, trabalhadores, e essa harmonia, essa felicidade, parecia mesmo irradiar deles. Como o reino era pequeno e todas as pessoas se conheciam, Elza e Fraga eram mesmo muito queridos e sua companhia, motivo de grande contentamento, das crianças aos mais velhos.
Mas eis senão que, certo dia, o Rei enamorou-se pela bela Elza. Afinal, aquele seu viço e candura também não passavam desapercebidos ante os seus nobres olhos. O Rei tinha intenções de desposá-la e fazer dela a sua Rainha. Seria então Elza, além da mais formosa, a mais importante dama do reino.
Acontece que Elza só tinha olhos para Fraga e, para ele, sua esposa Elza era a razão de seu viver: eram completos um pelo outro; essa completude, essa perfeição envolvia todos aqueles que tinham o privilégio de compartilhar da presença deles. E, por mais que o Rei se exibisse, com os mimos de sua nobreza e poder, não chegava a tocar o coração da bela dama.
No afã de impressionar Elza, uma vez que não podia competir com a beleza singela e a bravura de Fraga, o Rei traçou planos de expandir as fronteiras de seu reino, num misto de demonstração de força e ambição pelo poder.
Aos poucos, novos homens foram amealhados ao contingente do exército, que deu início a uma extenuante série de exercícios e preparação tática para a empreitada. O Rei informou os seus súditos quanto aos seus planos, apesar da reticência dos conselheiros em apoiá-lo.
A apreensão era crescente no reino. Certa noite, Elza expressou ao marido a sua grande preocupação de que algo acontecesse a ele. Mas Fraga demonstrou muita segurança e acalentou-a. De fato, os homens estavam bem preparados, e ele destacava-se dentre os guerreiros, pela sua bravura, sagacidade e fidelidade ao exército do Rei.
As batalhas começaram e, apesar de algumas baixas, o Rei acumulava a riqueza recém subjugada - pertences, metais e pedras preciosas -, assim como as fronteiras do reino iam gradualmente se expandindo. Tempos de guerra eram alternados com tempos de paz, mas os guerreiros estavam em constante exercício: dedicavam-se ora as batalhas, ora aos cuidados com o reparo e a preparação de novos ataques.
Após as conquistas, o Rei promovia grandes celebrações, às quais todo o reino era convidado, e invadiam noites adentro. Era sempre uma fartura de comida, de bebida, muita algazarra, pompa e exagero. Nessas festas o Rei aparecia imponente, geralmente alardeava sobre as riquezas conquistadas. O Rei atraia a atenção de algumas das damas do reino. Entretanto isso não surtia efeito para Elza, sempre exuberante, radiante com o retorno de seu amado após cada batalha. Elza e Fraga dançavam com os seus corpos colados por horas a fio. (Isso deixava o Rei possesso).
Com o sucesso nas batalhas (e o insucesso no amor), a ambição do Rei tornou-se doentia. E essa insensatez, é claro, tinha desdobramentos sobre os seus súditos. Os homens estavam desgastados com o número crescente de combates, e as mulheres sobrecarregadas por terem de cuidar sozinhas da criação, da alimentação e da manutenção de seus lares. Os conselheiros do reino desde o início foram contra; agora, até Fraga, o mais bravo e fiel homem do exército, queixava-se dos desmandos do Rei. Achava que era hora daquela tensão insuportável ceder ante a normalidade, até mesmo os guerreiros sonhavam com dias de tranqüilidade e paz. Era visível que a guerra estava consumindo-os a todos. Elza tinha perdido peso, passava as noites em vigília orando pelo marido nos tempos de batalha, já não trazia em seu semblante o brilho de outrora.
Certa feita, Fraga comandava um grupo de homens após algumas semanas de batalha, quando sofreram uma emboscada. Fraga era um guerreiro incomum, mas encontrava-se exausto, assim como os demais. Por breve instante, sua excepcional concentração vacilou, e ele baixou a guarda. Foi o suficiente para que Fraga fosse ferido de morte: a lança do inimigo atravessou seu tórax, dilacerando o seu peito. Reza a lenda que, naquele exato momento, como que por telepatia (ou sincronicidade), Elza sentiu um aperto em seu coração, uma fraqueza imensa, experiência tão tocante que a fez antecipar a notícia que, em breve, receberia.
Aquela batalha, o Rei perdeu. Foram necessárias, porém, muitas outras baixas em seu exército, mais algumas batalhas, até que o Rei, finalmente, cedesse ante ao seu desejo de poder e sangue. O reino finalmente voltou aos seus dias de paz. Entretanto, nunca mais foi o mesmo. Ele era agora maior, um reino com mais recursos, um maior número de súditos; mas as demandas também eram maiores.
Sobretudo Elza, nunca mais foi a mesma. Era agora uma dama de feições tristes, magérrima, sem a vivacidade de outrora. Apenas não a abandonaram os amigos do casal. É que aquele contentamento que Elza e Fraga emanavam, a cumplicidade, aquela vibração, sintonia, aquilo seria uma lembrança indelével para todos os que compartilharam daquela dádiva e traziam em seu íntimo o signo da dignidade.
Mas parecia mais forte do que ela. Todos os dias Elza ia até as margens do lago, passava longos momentos por lá, a observar o seu semblante refletido no espelho d'água, até que sua visão ficava turva, e a imagem que ela entrevia era a sombra do bravo guerreiro, seu amado Fraga. Então ela soluçava, chorava seco, sem verter uma única lágrima sequer. O Rei também sentiu compaixão pela dor de Elza. Ele bem que guardou um período pelo seu restabelecimento, mas acabou por desposar outra dama, Safira, à época a mais bela e graciosa de seu então poderoso reino.
Muitos anos se passaram, os amigos sempre a reconfortarem-na, ajudando Elza a suportar aquela dor, que não cedia. Certo dia, às margens do lago, ventava forte - coisa que era incomum naquelas cercanias - e isso impediu que os contornos de Fraga se formassem no espelho d'água. Aquilo era mais do que Elza podia suportar; e uma dor lancinante comprimia o seu peito. Ela não tinha forças para soluçar, gritar ou chorar. E então, uma única lágrima rolou pelo seu rosto e precipitou-se sobre a face do lago.
Elza imaginou-se como aquela única gota. Ela percebeu que, ainda que todo o reino velasse a perda de seu amado Fraga, mesmo que todos derramassem as suas lágrimas naquelas águas agitadas pelo vento, a figura do guerreiro jamais formar-se-ia. Mas sua imagem sempre estaria lá, em potência, junto às gotas que formavam aquele vasto lago. Se não fosse assim, o milagre da esperança inabalável que os seus amigos depositavam nela não se justificaria; toda a existência nesse mundo estaria fadada à dor e ao desencanto apenas.
De súbito, compreendeu a grandeza dessa idéia, de que guardamos um pouco do outro dentro de nós mesmos, e que o outro leva consigo um pouco de nós. Que as gerações se sucedem, que os reinos mudam de forma, de lugar, mas a essência está sempre presente: a mesma força que derruba é aquele vento indomável que sopra forte, nos leva adiante, através dos rumos da evolução. Então ela sorriu. E aquele sorriso era de grande ternura e compaixão. Tão grande, que nunca abandonou sua face. Até o último de seus dias.
- dedicado à poetisa Elza Fraga
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