quarta-feira, 20 de julho de 2011







A DANÇA DOS ARCOS - A NASCENTE

I - ASCESE


1.


O Outono verdejava, por entre as amarelas sombas do fim da tarde, um cair moreno, translúcido de esquecimento. As encostas da floresta serpenteavam, atrás dos pinheiros, suas cores murchas, plácidas, quase feridas das pegadas do último demônio. Os ventos entornavam-se para oeste, ligeiramente comprimidos em sua compulsão, atônitos do repetido hábito de ventar-se, amargos da entropia dos elementos, suados de si e da sina.

Margri,e a beleza da fada continuava a ser um princípio na incerteza, era ciente do tempo de olvido. Fora abençoada pelas Castas e discípula do Mestre, aprendendo a precaver-se da curva , maliciosa, aonde se confinam as descompassadas desfigurações da consciência. Em sua vida de dias extensos e intensos em número de anos e bênçãos desmanchara com vagar e serenidade os disfarces da vertente, envolvendo-se nas correntes do deus. Os girassóis do amor povoaram-lhe a vida de beijos longilíneos, estirados de frescos perfumes, saturados de romances e solfejos de anjos.

Já eram vindos, porém, os anos em que os frutos do éter deixavam-se murchar na cabana de musgos. Rareavam as crianças, filhos e acolhidos, que a rodearam de mimos. Os amantes, tão dedicados, passaram-se para outro espaço – de onde pressentiam-se distúrbios de instrumentos e sopros de confrontos - as fadas e duendes, sempre apressados para musas brincadeiras e fartos encaixes, sopraram-se em rubra modéstia, e disseram-lhe, que enviados da deusa, só faziam música ao rumor de grandes águas.

Enfim, no momento do lapso, o silêncio, sempre bravio no direito, acomodou-se, solene, por toda a extensão da alma. Escutou-a com tanta precisão que soube palmilhar cada recanto de sua principesca calda, numa perita profusão de cautela e dor.

Margri não se espantava. É que amava, na vida, a estonteante marcha de vaivens e formas, a exuberante fatia de cheiros e modos, as delícias dos lençóis amarfanhados nas tardes de odores agridoces... todas as partes compõem a maré cósmica e são extensas as extensões entre os bocados de matéria, mas é certo que vivia-se para o milagre, a comemoração e... a complexidade, os últimos e bem acabados acordes de cada ensejo.

- Sem a alma não é possível viver – dissera-se uma vez. E é bom saber que não a confundia com o espírito, visto que a via como a uma serpente alada, coberta de luxo, repleta nos sons e nas cores, asfixiada de paixões, vagando pôr entre os frutos do éden.

Quando a noite principiou, enfurnada numas estrelas de aura cinzenta, de corpo carregado e voz de lusco-fusco, a saudades do prazer debatia-se nos vãos da janela da sala. Enrolou-se na manta guardada no sopé da lareira e apreciou na sopa o caldo vem temperado .

- A vida é breve - anunciou. Longa e desavisada, estirada e quase à margem da lógica. Bem antes do acordo de si, foram os fractais esparramados ao longo da sina. São evidentes os sonhos do homem, mas, quando empunhou Apolo o Carro do Sol a forma anunciou sua felicidade. É entender a norma como figura atrelada às condições.

E sorriu, depois de tanto tempo levada no carrilhão da finitude. Aqui e ali, por entre o farfalhar das folhas, pressentiam-se uns sussurros. Quem sabe num próximo momento...



2.



Cada pétala de água erguia-se, sobranceira, da imersão no musgo amarelo pálido. Em círculos nodosos, espirrado por fatias de néctar insosso, o fundo do riacho ricocheteava alguns murmúrios. Margri espiava essas águas, antes cenário das mais fervorosas brincadeiras do Bosque. Era ali que seus muitos amigos se reuniam, nos finais de tarde, para os jogos do amor, os piqueniques de frutos e vinho, a conversa solta na abstração do dia, a música regada nos sentimentos fáceis e fruídos.

Já, agora, eram quase todos dispersos nos intrincados mesquinhos de cada destino. Vez em quando se encontrava com um ou outro e doía-lhe as faces escuras, pouco melodiosas, fincadas numa alternância de sobrevivência bravia. Poucos se mantinham estáveis e amenos de sina e, ainda esses, desfiguravam-se em cotidianos quase enfadonhos, insípidos, rolados à margem da navegação.

Como se desfizera aquela redoma tão pura, ensaiada nos arcanjos da mata, inspirada nas fadas do prazer ? Eram tempos de alternância, de estocadas nas raízes da raça, de quebra de conduta e esvaziamento de modos e imagens, mas ainda assim...

Margri não podia evitar os suspiros no leito do rio. Nem o contato com a secura dos rins, nem a aridez do vento e dos dias numerados à precisão na contagem do estio. Sabia da profusão de ritmos da matéria, formada aos quantas, depurada ou acirrada pelos imprevistos dos corpos pulsantes. Mas, aquele que sonha a partir de suas próprias importâncias e configurações só poderia bendizer-se quando estivesse imerso na evolução das melhores partículas. Pois, é dessas conexões que fora criado, gostava ela de crer. Embora nem sempre, nem sempre... e seus olhos se machucavam das lembranças dos nódulos.

Esquecida de si acompanhava com sofreguidão a cada ruído. Estava quase decidida a imolar-se no rastro da floresta enquanto não se deparasse com um princípio de magia no chão orvalhado de tantas despedidas. Aquelas pegadas se apagariam, vergadas de tanto tecer na entropia, vexadas do ditame de fornecer no que desfalece.

Era injúria cobrir um caminho aonde os feitos eram impérios da ausência do Sol.. Que lhe confiassem os Mestres a guarda dos santos lugares era primor de que até se bendizia. Mas, também era preciso que enviassem seus enviados, os seres de outra linguagem, os conformes do novo centro.

O gosto da chuva não foi puído por nenhum rasgão de arrependimento. O peito da fada foi-se amoldando come um cone de elástico espiralado até arredondar-se em tão perfeita base que o sulco gerado no sangue foi retomando o mesmo gosto doce do deus. Pequenos fruídos advindos da floresta espaçavam-se em espátula e por eles uma trama de corrente ígnea e branca. Era quase crível que dessa torrente participassem, por razão de um cumprimento à esperança da moça, a sombra dos vassalos do Senhor do Centro, em brios por revelar que de si vazaria uma boa estrela.





Jandira Zanchi é poeta , ficcionista e educadora. Publicou Balão de Ensaio- Editora Protexto (2007).


Seja o primeiro a comentar: