O cotidiano ornamental
Mas o dia não se abriria se não fosse essa esperança que nos levanta. A música urbana dizendo que ainda não é o fim. A luz matinal tentando quebrar a opacidade das translúcidas retinas que teimam em omitir esse curioso existir das coisas.
A vida é um tanto complexa, não é verdade? Porém não é preciso ir tão longe para questionar: pelas ruas, pelos olhos, o mistério passa, sem alarde. E o sistema segue: dia após dia, sol, lua, chuva, frio, calor, umidade, seca, carros, passos, chegadas, partidas, pássaro que plana, conversas à beira da calçada, a mudança de planos no fim da tarde, etc, etc.
Também não é questão de questionar, não é forçar pensamento, não é bem arrancar a verdade desse louco seguimento; e isso não é se deixar enganar. É só questão de não perder o encantamento, é saber não sabendo e ver o incrível, as coisas fluindo misteriosamente, magicamente, e fluir junto também; é fazer redescobrimento. Estranho, não? encantar-se com o óbvio. Talvez seja óbvio porque o peso da rotina sufoca o caminhar e tapa os olhos.
Transpassar o óbvio e olhar o seu mistério, e “escutar a cor dos passarinhos”, como disse o poeta – um tanto além, mas eis o cotidiano. É ver longe da ciência.
E pode ser qualquer coisa mesmo: é tudo que flui a frente dos olhos, e também tudo que flui antes dos olhos, no interior do ser, no nosso ser que também é cotidiano. De princípio fica o impulso, o convite. Depois conversaremos mais.
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Pablo Flora é poeta, mas quando as palavras não se aquietam no poema, inventa prosa.
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