quinta-feira, 4 de agosto de 2011

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CONTAÇÃO - "O homem que deu à luz uma menina"





O HOMEM QUE DEU À LUZ UMA MENINA

Eu não acreditaria se o sitiante não o tivesse afirmado com tamanha convicção. Deduziria o desespero de uma mãe miserável, ou talvez um cruel sequestro frustrado. Certamente toda a história seria compreendida com naturalidade, fosse eu uma mulher. O fato é que a mim, homem que sou, mesmo o choro rachado tendo mexido profundamente como se brotasse do meu próprio peito, mesmo esse choro não fora suficiente para que eu percebesse tamanha absurdeza.

A cena toda se desenhava como uma infeliz ocasião em que um homem igualmente infeliz se refaz de um desmaio – possivelmente ocasionado pelo calor intenso daquele cerrado mato-grossense –, ao mesmo tempo em que o destino lhe entope os olhos com a imagem de uma criança desamparada. Acontece que aquela criança, aquela menina recém-parida e ainda de peles amarrotadas, não havia sido abandonada. Aquele bebê de choro magro tinha era pulado, para o mundo, de dentro de mim.
E o sitiante fitava-me como se eu fosse de outro planeta, e escorregava os olhos esbugalhados para o rasgo sujo em minha barriga e depois para a criaturinha gerada, em seu colo. Chacoalhava a cabeça em descrédito – o mais profundo descrédito de todas as fés de sua vida de homem da lida e da Igreja. Na certa se perguntava onde estaria Deus naquela aberração toda, de que maneira uma concepção de tal natureza fora permitida – se é que o próprio Demo não a tivesse encomendado.
Como se voltasse de um transe, esticou-me os braços a ofertar a menina que ainda chorava e se revirava toda naquelas mãos grandes e gretadas, e repetia “nossas senhoras” e todos os tipos de súplicas e bordões próprios dos cristãos desolados. Como eu ainda não havia conseguido absorver um teco que fosse de toda a complicação, o homem acabou por ver-se obrigado a recorrer a qualquer espírito-santo que o valesse, na empreitada de elucidar o por ele próprio não compreendido.
Pediu-me licença e ainda reticente foi se aproximando da banqueta ao lado da cama onde eu descansava o corpo doído pela fenda mal feita e ainda aberta. Começou devagar o discurso explanatório, ou o que pudesse chegar mais perto disso. Finalmente, deu-se por satisfeito em apenas narrar os fatos, por mais absurdos que pudessem parecer. E o fez sem desviar o olhar da criança, num cuidado reverenciador e, ao mesmo tempo, amedrontado.
Ao sentar-se, esticou uma das mãos e alcançou um pedaço de linho cuidadosamente dobrado em cima da penteadeira de carvalho. O quarto era pequeno, e aqueles três móveis – cama, banqueta e penteadeira – já o preenchiam e conferiam-lhe uma atmosfera acolhedora. E aquele pedaço de linho tão alvo e liso, que eu pensei ser para estancar o resto de sangue que ainda não coagulara, foi embrulhar a menina. E o sitiante o fez com tamanha ciência que não seria difícil deduzir dois ou três filhos seus. E, dessa forma, haveria de se entender a pasmice do homem diante de acontecimento como aquele.
Depois de duas frases que serviram apenas para me situar naquele pedaço de terra, chamou a mulher e entregou-lhe a menina. Emerenciana, que era o nome da senhora magra e corcunda (apesar dos aparentes quarenta e poucos anos), levou-a do quarto e em seguida voltou com fósforos, agulha e náilon. O homem tornou a narrar o modo como havia me encontrado desacordado dentro de minha caminhonete, e como possivelmente ela havia sido “brecada” em uma mangueira velha da estrada que ligava seu sítio e o vilarejo.
Enquanto isso, Emerenciana riscou meia dúzia de fósforos e pretejou a agulha para esteriliza-la. Depois limpou o preto em um chumaço de algodão e passou o náilon no buraco. Feito o ritual de assepsia improvisada, puxou de debaixo da cama uma garrafa de cachaça branca e verteu-a quase inteira sobre meu tronco volumoso. Aquele líquido penetrou minha carne exposta como brasa nova e, enquanto urrava, retorcia-me em agonia com as poucas forças que ainda conseguia arrancar dos músculos embriagados.
Foi quando consegui aquietar-me que a mulher cravou os dedos nas extremidades da abertura em meu abdômen e enfiou a agulha. E, em movimentos precisos, desenhou um ziguezague de linha invisível de modo a esconder qualquer pedaço de entranhas que ainda desejasse aparecer, antes mesmo que eu pensasse em atirá-la à parede com um empurrão e me livrar de vez de todo aquele martírio.
Olhou-me firme nos olhos, recolheu os instrumentos e saiu. O homem, que havia deixado de falar para dar lugar aos meus gritos e mal-dizeres, retomou a narrativa dos tempos de maneira fiel e, pelo que percebi, solidária à minha total ignorância de qualquer coisa que levasse ao fato último em toda a sua bizarrice. Contou-me como conseguira, com a ajuda do sobrinho moço e forte por causa do trabalho na terra, tirar-me do veículo mesmo com todo o meu peso de cinquentão obeso e diabético. E também como tinham me colocado em cima das sacas de milho de sua carroça e voltado prontamente para o sítio, pois meu estômago começara a contrair-se em demasia.
Descreveu em minúcias todos os movimentos normais e anormais que minhas entranhas realizaram no período de duas horas, e também as inúmeras táticas de que ele e Emerenciana se valeram na esperança de que eu despertasse daquele desmaio que mais parecia um coma. Cessou a fala por alguns segundos, como que para recuperar uma linha de memória que sequer fazia sentido, e foi quando tomou fôlego para recobrar as palavras, que os olhos esbugalharam-se novamente.
A voz ressurgiu mais baixa, quase um sussurro, mas logo foi crescendo à medida que apontava uma das mãos para minha barriga e media, com o polegar e o indicador da outra, o tamanho do pezinho que Emerenciana disse ter visto empurrando minha pele para fora: assim, ó! Ao que o homem arregalou novamente os olhos e eu parei meu tempo sobre aquela cena, a mão levantada mostrando um intervalo de uns três centímetros, e o doido afirmando um pé dentro de mim. Pior, uma criança inteira.
Comecei a sorrir enquanto imaginava qual seria o golpe que o casal aparentemente simpático pensava em me aplicar, como se eu fosse algum incapaz ou, no mínimo, tolo demais a ponto de acreditar em tamanha sandice. O sitiante parou de falar, abaixou os braços e apertou os olhos. Como se tivesse ouvido meus pensamentos começou a esbravejar, disse ser um homem honesto e que nunca tentaria enganar quem quer que fosse, nem mesmo um desconhecido. Que havia salvado minha vida e a daquela criança, e que seria muito indelicado se eu não tentasse ao menos ouvir a história toda que, em suas próprias palavras, nem ele entendia.
Tornei-me sério e interessado novamente, não por perceber ali um homem claramente ofendido com minha insinuação, mas pela mais ordinária curiosidade, talvez um tanto de canalhice – ver até onde a loucura humana poderia se estender, escarafunchar a fantasia e a tolice alheias, alimentar uma não-realidade até que ela se confunda com a própria realidade.
E foi por isso, e talvez só por isso, que o homem tornou sabido a mim que, tão logo Emerenciana disse ter visto o contorno do pé, ele e o sobrinho deitaram meu corpo mole em cima da cama e o moço saiu logo em direção ao vilarejo a fim de trazer uma parteira ou algo que pudesse tirar a criatura de dentro de mim. E também que a parteira logo veio, olhou o homem em cima da cama e saiu em disparada, mal-dizendo as almas e os protetores daquela casinha de cristãos, como se tivessem travado acordo com O Sem-Nome.
O homem contou-me também que Emerenciana, mulher vitoriosa desde que a mãe tentara em vão fracassar-lhe a vida ainda no ventre, tomou uma estatueta de São Judas Tadeu em uma das mãos e invadiu o quarto onde ele rezava ao pé de minha cama. Na outra mão portava uma peixeira que costumava usar para despescoçar as galinhas e uma corda, com a qual amarrou o santo na cabeceira da cama antes de meter a faca naquele meu estômago inquieto.
Em menos de três minutos encontrou, em meio a capas de gordura e muito sangue, uma menina desassossegada, que logo disparou o choro a fim de mostrar sua insatisfação em relação ao mundo e ao ventre a que fora designada. Não parou mais de berrar até que Emerenciana tirou o peito pra fora e meteu-lhe na boquinha rosada, e a menina sugou e sugou até mirrar completamente a mama direita da mulher. Dormiu entre suas coxas grossas, embalada pelas súplicas de perdão do sitiante diante de uma cruz pendurada frente à porta de entrada da casinha modesta.
O sitiante suspendeu a fala novamente e deixou o olhar se perder nas frestas do chão de madeira enquanto aguardava pacientemente qualquer reação minha. Então, de súbito, perguntei como é que ele achava que eu não teria percebido qualquer coisa crescendo dentro de mim sem ao menos procurar entendimento. O homem olhou-me e sorriu ao dizer que eu tinha “corpo de sobra para esconder um bezerro”, referindo-se à minha obesidade. E arregalou os olhos mais uma vez, levou o dedo indicador à orelha e chamou minha atenção ao barulho que novamente se iniciava na sala.
Aquele choro me doía no peito, como se realmente fosse parte de mim. Enquanto ele não cessava, comecei a me questionar a possibilidade de algo assim, e se tamanho absurdo fosse realmente o que havia se sucedido. Tão logo a casa silenciou novamente, pedi que o sitiante me deixasse descansar um pouco para mais tarde continuarmos a conversa. Ele se levantou e saiu, mas antes que fechasse a porta eu pude ver a menina dependurada em um dos peitos de Emerenciana, e também o rosto de Emerenciana, vermelho e sereno.
Logo a noite chegou e eu fingia o sono quando a mulher penetrou o meu quarto. Trazia uma caneca de leite e um pedaço de pão, e os colocou na banqueta ao lado da cama. Por um talho de olhar pude ver, quando Emerenciana se debruçou sobre a cama para ajeitar as cobertas, o peito murcho que há pouco alimentava a criança que eu parira.
Algumas horas depois arrisquei levantar-me e, um tanto tonto, cambaleei o corpo ainda dolorido até a porta. Espiei por uma fresta, a fim de conferir o sono de todos, e finalmente adentrei a sala. O sitiante e a mulher dormiam em um cobertor estendido no chão, abraçados. Antes de abrir a porta de entrada da casa olhei dentro de um cesto de vime em cima da única cadeira. A menina balançava os braços e as pernas, e olhava para mim. Senti um repuxão na barriga, que sangrava pelo curativo.
Com a mão segurando as entranhas, fechei a porta depois de sair.


Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .

1 Comentário

Empório Kadam

Mariela, fiquei sem palavras!!! Acho q esse superou todos os outros contos! bjinhos Su