A NAS CENTE 10, 11 - JANDIRA ZANCHI

A NASCENTE

I -  ASCESE

10.

     Os negros olhos de Aboé não tinham as ausências de costume. O sorriso que seus lábios ensaiavam desfaziam reservas e inquietudes. Um pouco cansados de suas latitudes, os dois magos entendiam que sua amizade já avançara o teste dos primeiros solfejos.

-         Até aonde se deve confrontar o rasgar da alma ? – perguntou Margri.

-         A verdadeira via do homem é aquela que o pousa branco e sem malícia sobre o solo.

-         O segundo caminho...

-         Sim, despreparado de estratégia, desvalido de intenções. O Anjo dedilha-se por inteiro nos nervos do ser, não se nega nenhuma beleza, todo acorde ao prazer, nervos de amor e emoção. Antes que ao fulgurante alvorecer dos raios solares, é afeito aos mistérios do coração. Aquece todo aquele que, bom ou mau, está desfavorecido. Não escolhe acerto ou erro.

-         Compreende todos os jugos, e não julga nenhum desejo.

-         Apenas vive, e  se confronta como os modos da criação. Assim é o coração da criança e nenhuma ciência, nenhum renascimento,  pode evitar que o espírito retorne, sempre impune, a esse mantra. É o fato da forma humana.

-         Cada vez que retorna à benevolência do sono divino, abre-se inteira ao sonho.

-         As afrontas da vida encolhem as formas com seus nódulos e espinhos. As resistências do ego arvoram-se em falsa defesa. A ausência de amor e o medo das trevas reagem com tamanha violência aos arranques do tempo, que muitos adultos já não se reconhecem no isolamento. Perfuram-se nas relações como vermes, sedentos de ilusões. O espírito pousa, nas curvas da noite, perdido nos desvarios. Dentro de si, vive o homem afastado de si mesmo. Na luta pela vida acaba por perder-se da eternidade.

-         Mas é na superfície que se movimenta o cursor do ser.

-         Porém, é no fundo que se atola a esperança de florescer.

-         Portanto o desmanche do inconsciente não encontra trégua até o alívio na felicidade.

-         Dioniso só anuncia sua expansão no nono arauto. Antes, o Clarividente deve munir-se das mais brandas águas.

-         E o caminho...

-         Expansão e ciência de si. Aonde parar é escolha e necessidade de cada mônada. Pode florir-se em arte, virtual de grande valia. Quem sabe arrastar-se à tantas faces e à matriz inesperada. Enfim... é preparar-se e não recusar fatos e modos.

-         Ainda assim precisamos voar. Senão  empobreceremos o longo do percurso.

-         Que o Universo insiste em apontar ao nosso redor. Não podemos evitá-lo. Bem ou mal as forças que se levantam em direção ao acontecimento necessitam-se conscientes. Precisam exprimir-se, ousar, fazer ciência. Que o impuro não se descuide de ser uma contra face de alguma grande pureza. O que o entorna nas raízes do lodo é matéria que de si não fugia antes da forma de si.

-         Consigo entende-lo. Investigar-se e ir para muito além da métrica decorrida no decorrer da vida. E certificar-se do extenso composto de si mesmo. A consciência é apenas um braço, um solo arejado para o pouso da nave mãe. Quanto mais fecundo for o material em que se embase, mais seguro será o vôo da mônada.

-         O poder com que sonha o homem sedento de grande força esconde-se na inconsciência. Ali, a eternidade, a ausência de medo, o imã que intercede por seus mananciais.

-         O racionalismo, para edificar-se, brutalizou a fonte de luz.

-         Mas, podemos retornar ao deus do ser. Afinal, sempre damos muitas pistas a nós mesmos. Os sonhos que não compreendemos, as expressões surpreendentes de nossa face, as revelações de memórias e correlações, os fatos similares que se sucedem à revelia de nosso ensejo. Que ser sou eu? É pergunta feita em boa hora.

-         Assim poderemos entregar ao deus renovado a espada dos Novos Signos.

-         Como minha deusa tão bem percebeu. Não é o método, nem a vontade. Antes, aquele, que curado dentro de si, ainda não se revelou. Conhece todas as fronteiras, sabe de todas as suas sendas. Ao solo fomos arremessados segundo as leis do seu arredondamento. E o que impede o homem, de dentro de si, viver a extensão de todas as suas curvas ?

11.

     Quando Alonso partiu, a primavera estendia sua asa por toda a floresta. Deparou-se com tanta prontidão de júbilo, nas aves e nas flores, que só armou-se de um pequeno séqüito e algumas provisões porque era de seu intento fundar o Hino de  seu Templo em outras terras. A seu contento estaria isento de passado e de companhia, pois aquele homem, já tão livre, foi tomado por uma embriaguez de vida que desconhecia.

      Para melhor resguardar-se,  ordenou ao seu capitão que fossem suficientemente longas as léguas que os separariam de sua pessoa. Desbravaria cada pedaço do caminho, e deixaria pistas bem marcadas para o restante dos homens e mulheres que o seguiriam. E que fossem de bom número os dias da  espera do percurso. Alonso queria estar em total imersão nos meandros do destino, esquecido de palavras humanas e observações de suficiência até encontrar o lar de sua eleição.

     Acostumado às grandes dimensões da montanha foi encantando-se, à medida que descia, com os ruídos e imagens dos animais de pequeno porte, das flores que se confeccionavam em rosas e vermelhos vibrantes, da vegetação, sem soberba, que procurava aproximar-se das formas vivas. A floresta parecia-se com um bosque, e nele se transformava para muito assemelhar-se a um jardim. Aí estavam os lilases, os amarelos enfiados em azuis celestes, os riachos cristalinos de murmúrios satisfeitos, os animaizinhos brincalhões , os duendes travessos. Admirados da passagem do nobre Príncipe, acolhiam-no com algum temor, mas com grande efusão, cientes da chegada de uma força benéfica.

     Em breve, ele que tanto exigira de seus vassalos a solidão, era acompanhado por exótica corte de bichos, seres anímicos, e também outros que se situavam em um degrau inferior da escala vibratória. Eram esses últimos os mais polidos, fazendo toda série de oferendas ao mago de amarelo e preto, desculpando-se de algumas malfeitorias recentes, atribuídas à ausência de autoridade no reino. Alonso tratava-os com severidade, e pouco se espantava de suas presenças, pois era ciente da existência de toda série de energias nos lugares abençoados. Ia exigindo-lhes pronta obediência e vários serviços, afinal, mesmo que habitassem, como o faziam, as redondezas dos lugares de benção, para ali permanecer teriam que devotar-se a proteção dos puros e esquecidos de si. Concordaram com presteza, e até pareceram se bendizer da novidade.

     Durante uma seqüência de quatro meses Alonso armou a tenda no belo parque. Ali se deleitou com a companhia dos animais e com o vôo das aves. Sem perturbar-se do intrincado dos grandes caminhos, comemorou da vida o seu mar de simplicidade pueril. Era assim que se formavam os mais belos  cantos e os melhores dias. Era dessa forma que vazavam, na vida, os momentos que acolheram as lágrimas de piedade do brando, e enfim, era pelas crianças que se vivia, mesmo quando não fossem tão boas. Sua casa não estava ali, mas a poucas léguas de distancia.  E o Príncipe, queria primeiro, enamorar-se de seu jardim.