quarta-feira, 3 de agosto de 2011

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A NASCENTE 5, 6 e 7 - JANDIRA ZANCHI



A NASCENTE

I -  ASCESE


5.

      O perfume da noite enveredou para o gozo do dia. O Sol, esquecendo-se dos últimos pudores, retomou o ditame de firme fornecedor de vida, desbravando o céu com o azul de seus raios. Vagando em rumos semânticos, centelhas de imprecisão nostálgica entornaram-se nos corredores de vento que, aleatórios e desfeitos de estática, eram uma configuração de benção e serenidade.
     A sombra do sábio vergou as árvores altivas como pétalas no infinito. Envolveram-se as ramagens em lágrimas, vestes de orvalho da madrugada ansiosa que, morena das confidências das estrelas, desnudava-se para o reinicio da vida. O sonho, que permeia os passos do poeta, sorriu para Margri :
-         Deusa celeste do corpo brando... cem mil aves se prestaram a enviar-me o sussurro da mais bela das fadas.
-         A flauta do Senhor dos Arcos pousou uma estrela em teu manto...tua alegria é a verdade revelada.
-         Ela não se desmente e tão pouco se forma.
-         É crua e amaciada em suas bordas de ouro. Do fio da terra se elevará a corrente das águas !
     Girado no oitavo patamar do espírito Aboé era o mago da clarividência. Moreno longilíneo de grandes olhos negros, era esfuziante de movimento, sagaz de vento e ditos pueris, armando para o público um colorido jogo de espelhos, o brilho levitando nos rasgos de inteligência. Enviesava-se de tal maneira na distância de si mesmo que ,   ainda que na superfície, impunha o acordo de suas sendas. Não havia nenhum que vagado ao riso cristalino da largueza de suas festas não conviesse, sem que de seus frutos osculasse uma oferta, a certeza do espírito correndo suas lágrimas de sabedoria e ave.
       A poucos ocorreria pedir-lhe um pouco ou goles do néctar envenenado do conhecimento. Parecia natural para os mais favorecidos do deus e dos mantras, que ele se prestasse aos arranques dos fluídos dos anjos. Aboé era dorido na asa e na brincadeira pelo conhecimento que nele vagava por águas e ar, mesclando na sombra da profecia a nudez da causa, líquida e rarefeita, à rir do fenômeno.
      Para Margri o sábio principiou do princípio, desanuviando-lhe o cenho, impondo-lhe quinze dias de saltitante ritual de banhos de Sol e calores de riachos. Amigos de um e de outro vindos de latitudes quase esquecidas formaram o círculo no regar da música para os acordes do vinho. Eram extremamente agradáveis as tardes de primavera florindo nos matizes da relva, despindo de dúvidas os mantos dos dois  sacerdotes, que começaram a parecer-se com adolescentes embriagados das primeiras liberdades. Margri, novamente menina, ciente do bom lugar no esquecimento do que se enfurna em mágoa, já não relutava.
     Aos poucos foram vazando os ecos da sensitividade da mata. Principiou por se anunciar o veio celeste que, para além do Portal de Ouro, ditava instâncias muito superiores aos rituais de Apolo. Arredondaram-se os negros olhos de Aboé , vergados à meditação na face oeste do deus. À margem do ciclo da lua que, púrpura,  prateava o silêncio do ser, ascenderam-se as grades da virtual complexidade. Na mente do gênio da mata dilatou-se o espaço/tempo, rasgando o inconsciente quase à posse da mônada nos seus veios cristalinos  da grande esfera. Aboé sentava-se próximo aos mantos na dimensão que não se perfila na dualidade da forma. E começou as meditações dos transtornos da vazante.

6

      Descansava o entardecer de estrelas nas brumas da floresta. Aboé mantinha-se à parte, detido nos rumores da face oeste.
-         Nossas festas já não encontram o mesmo ensejo – afirmou a fada. Antes de tua vinda foram inúmeras as noites sem vento, desprovidas de qualquer acorde, à margem do movimento.
-         É longo o percurso de cada destino – suspirou o mago. Estende-se bem mais do que a emoção que o levanta.
-         Ppr que a morte demora-se tanto a reconhecer a senha do ensejo ?
-         Porque se deita ao longo da entropia. Entre a sanidade e a quietude mil caminhos se entrecruzam. Ao relento de si mexe-se,  afoita, a vida, nas portas do vazamento. Ainda porfia-se na forma, mas a calda já não se desmancha ao porto da luz.
-         Talvez mais azedo seja o destino do prosseguimento. Ir-se para além da plenitude.
-         Só uma deusa de tantas bênçãos como Margri pode dimensionar os corredores que se seguem aos sons dos instrumentos.
-         Não me queixo, meu amigo. Até enamorei-me dessas noites cumpridas, sonsas e macias em sua desvalia. Dormia ao abrigo dos furores do talento, esquecida das embriagadas comemorações do alento.
-         Parecemo-nos mais com nós mesmos quando nos escurecem as tintas de nossas aventuras. Tornamo-nos capazes de traçar a mente de nossos apontamentos.
-         E o prosseguimento?
-         Procure o som, o cheiro, a harmonia e o encantamento. Sem embriaguez, porém, deixe que se esvaziem as pulsões desencontradas. É sabido que quando se enfraquecem os domínios do direito da vida as formas paralelas, aquelas que apenas acompanham, no coro, o triunfo da matriz, tentam enfiar-se ao centro dos acontecimentos.
-         Quanto a mim ouço principalmente o silêncio.
-         Pois soube comover-se de extensão. E não serão chamas chamuscadas que enganarão o coração da rainha das fadas. Mas, pode apostar, que os outros humanos, e entre eles serão muitos os de grande elevação de consciência, desgastam-se no insólito dos equívocos.
-         É deixar que se desnude o deserto de sua aridez. Só ao final do percurso renasce o canto da nova matriz.
-         Nossos corpos ,enfastiados dessa falta de sabor. devem ser o leme de nossas esperanças. O ouro e a prata apenas são as dádivas da oração. Fenecem ou aparecem na terra e no cosmo ao sabor dos favores do deus. Antes que seus portos de segurança somos os seus seguidores. Que a mais linda das mulheres não se perturbe desses estreitos de consecução. Sei que Margri é espírito de longa caminhada. Já bebeu as dadivosas lições da paciência na areia de suas mágoas.
-         Porém, embriagada das delícias do Bosque, quase me esquecia da privação da luxúria. Chegou ao fim de tempo de grandes armações nos trabalhos da abertura. Confesso que não desprezo o ensejo de retornar à Nascente do Cálice.
-         Nenhum de nós, minha amiga, esquece o líquido que embriaga e esquenta as noites no canto do Pássaro. Por mais tardio que seja o espírito da  sabedoria, ele também ama.
-         E se nos dispusermos ao pouso branco da colheita o fizemos pelo chamado da vida.
-         É impossível ignorar tal fato. O processo da inconsciência e os desmandos da abstração não amortecem Dionísio. O deus do primeiro princípio se  presta a esses contratempos com o único fim de conseguir melhor órbita para os seus encantos.
-         Amolda-se aos moldes de Apolo e ajoelha-se aos pés dos sacramentos apenas para deleitar-se, com muito  mais segurança e domínio, aos pés da Nascente.
-         E duvida de que no arco pousará , formoso, o templo do arsenal da vida ?
-         Não, não. Muito me esclareceram essas noites desprovidas de qualquer mito.
 
7.

-         Os mitos, quando se esvaziam, carregam consigo um pouco de nós mesmos – suspirou a fada. Ainda que os miremos de uma distância confiável somos presas de seu encanto.
-         É enganoso crer-se que as idéias e ideais dos seres humanos são desprovidos de teor físico. O que tomamos por abstração ou metafísica está muitas vezes imbuído de conteúdo energético e material já que se espelha nas  formas e forças da matéria. O mistério só se desvenda após muitas execuções do processo civilizatório. Para conseguir escapar do envolvimento com o modo de vida e produção das sociedades, precisa o espírito de mais de um empenho.
-         É ilusório, portanto, a pretensa superioridade de uns humanos sobre os outros.
-         Algumas vezes a superioridade existe. O que não é verdadeiro é o estar além da cadeia de processos. O maior e o menor são partes de um mesmo fenômeno.
-         A unicidade da dualidade.
-         Você bem sabe de tudo isso. Que não te surpreenda, portanto, essa dor que, mesmo controlada na encosta, fere na face e na ponta. É inevitável.
-         Creio que vivemos e aprendemos tanto para imitar a juventude e sua dilatação de visões.
-         É verdade. É um de nossos mais caros objetivos.
-         Por que dessa forma se esvaziaram os melhores deuses ? Não poderiam de alguma maneira renovar-se, vestir uma melhor face, estender-se mais ao cumprido nos novos compassos ?
-         Nenhum  daqueles que se sentou na tribuna do Mestre e do Direito permite-se ou consegue esse alento. Isso é para nós que somos o fato do talento, não interessa se tardios ou desprovidos de deslumbre. Anunciamos o Canto, mas não portamos o bastão. Logo, podemos nos conformar com qualquer desmando.
-         E por isso recebemos o legado. Durante muito tempo cismei de meus mestres, sempre tão ciosos da criação de novos paradigmas. Em seus últimos anos foram muito afeitos à disciplina dos costumes.
-         E ao principiar um novo tempo, aquele que seus ensinamentos permitiram esperar, despediram-se da vida.
-         Pois, enfim, já não mais se precisava deles.
-         Quanto a nós, discípulos do Mestre e guias de uma nova geração, devemos assistir ao rompimento de dois mundos. Não é fácil atravessar o túnel.
-         E  o silêncio é esse lapso no tempo.
-         Sem sombra de dúvida. E observe como ele é diferente para cada um.
-         Muitos, os que de fato fazem a ligação, o povo da senda vermelha, até se supõem bebendo no Cálice dos Eleitos. Mirando-se na expansão dos novos métodos se crêem acionados
-         O deus não se engana tão facilmente. É malicioso com os fortuitos e espelha-se entre pistas controversas. Todos gostariam de salvar a variedade das almas. Mas, o que sobe  ou o que desce não é de nossa alçada. A natureza conhece seus direitos e é pouco provável que não se apegue aos seus melhores rebentos.
-         Os que vão abrir o Mistério ou chegam nubentes ao pé do trono, ou se espelham no vácuo do rompimento .
-         Não existe a possibilidade de outro caminho.
-         É assumir-se em grande valentia e certificar-se de que nunca se rompe o fornecimento da vida.

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