O ÚLTIMO TANGO
Os olhos inchados e as mãos trêmulas denunciavam a dificuldade em se recuperar do choque da semana anterior. Chegara ao fórum com a mãe, que tentou inutilmente confortar-lhe sob os braços gordos, e caminhavam ambas com a lentidão propícia ao momento, uma tentativa inconsciente de retorno. Seus saltos cerravam cada passo como se calassem os minutos, e sua silhueta esguia e invejável recuava ante a proximidade da consumação do fato que a levara ali.
A desatenção no jogo dos passos embalava seus pensamentos e amornava o coração, já que até aquele momento todo e qualquer consolo havia sido inútil. À sua maneira um tanto desesperada, tentava compreender o fim de tudo, sem sequer distinguir entre tantos turbilhões onde realmente havia se iniciado a tempestade. Talvez o atropelamento das emoções diárias pelos anos a galope, ou então a rotina maçante dos amantes de mesmo teto. Não importava.
Àquela hora já não importava. Olhou então o corredor amplo, suspirou com uma leveza carregada de hesitação e dirigiu-se até a porta onde o advogado a esperava. A mãe acariciou-lhe os ombros, como sempre fizera desde os tempos de menina quando lamentava amores não correspondidos, e balançou de leve a cabeça como que para confortá-la. Ela, ainda sob o teto de braços maternos, sorriu de volta, como que para consolar a mãe em retorno.
Entrou na sala com o advogado, homem baixo, agitado e um tanto desorganizado. De muito renome, entretanto, entre os profissionais da vara de família, como a amiga Mariana afirmara há uma semana enquanto recolhia os cacos do cântaro de porcelana antiga, espatifado ao lado do sofá de sua casa. Mariana era amiga de muitos anos, confidente para todos os momentos, embora achasse que em muitas ocasiões ela sofresse de uma inveja quase que consciente de seu casamento com Carlos. Pois bem, desse mal a amiga não penaria mais.
E por desviar o pensamento de Mariana, pousou os olhos sobre Carlos, sentado estátua à mesa de vidro temperado da sala em que acabara de entrar. Não conseguiu deixar de notar os ombros retraídos e duros, como aços prontos ao combate. Ela desarmada, braços mornos a pingar os ruídos da ansiedade resignada, que ralhava com o tempo dentro de si. Teriam sido felizes, ela e Carlos, não fosse a maldita ânsia do amor quase sádico. Àquela hora estava ali, parada diante de seu cúmplice nos bailados de prazer e dor, embalada em prantos blues, vestida para o último tango de suas vidas.
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Deixou a sala com o mesmo repente com que decidira colaborar com o divórcio. Em outros tempos Carlos teria dito, a sorrir em malícia, que aquele jeito intempestivo de dar as coisas por terminadas era próprio do pai, um sueco pequeno e ranzinza com manias estranhas e incoercíveis, apesar da enormidade do coração (com o qual afagava todo o desamparo do mundo).
Uma dessas manias, talvez a que mais “cutucava” a esponholice latente de Carlos, era a de abandonar discussões em seus auges mais calorosos. Era nos momentos em que via a tempestade chegar que seu pai arranjava um jeito de deixar a argumentação e se fechava em suas divagações, como a mesma naturalidade com que mudava a TV de canal. Ela nunca entendera bem o costume de recuo súbito do genitor – quem poderia dizer que Carlos, com sangue borbulhante correndo em sua genealogia, haveria de entender.
Pois naquela hora, ao levantar-se da cadeira da mesma maneira que o pai se levantara tantas vezes, e declarar desta forma toda a conversa finalizada, cerrou sete anos de seu passado sob o coração pesado e se retirou em elegante caminhar de bichano. Pois bastava-lhe somente o ímpeto do corpo esgotado a erguer-se aos olhos do velho amado e a calma saída de sua vida – a cada pisar leve a extração de um corpo extasiado sobre a cama, uma gargalhada em noites quentes, um abraço a consolar o pranto.
E nesses desapegos instantâneos a cabeça latejou a ternura abandonada enquanto, desamparado que estava, o amor aceitava-se jogado na cadeira: ombros baixos e minúsculos, despidos da adrenalina que antecipara o confronto. Teria sido dada como vitoriosa ao deixar o adversário em tamanha exposição, não fosse o fato de que, terminadas as tempestades dos dias seguintes, percebera-se como parte da derrota.
Desta forma, ela que havia chegado como chumbo, foi embora aos pés de lã. E, talvez por essa razão, conseguiu então recuar um passo diante da porta a fim de olhar as ruínas do mundo de fadas que um dia construíra para si. E assim, num derradeiro abalo de corpos, seu olhar e o de Carlos se reconheceram como há anos não podiam – em ternuras primeiras, súplicas de uma inocência quase que juvenil.
(este texto, aqui apresentado como conto, integra o início de um folhetim que foi publicado em GraçaDesgraça.com)
Mariela Mei é toda verso e prosa. Formada no divã e na escrivaninha. Escreve para existir. Bloga em http://gracadesgraca.com .
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